Presidente exemplar
O presidente alemão não aparece na foto de família das cimeiras europeias, nem brilha no G20 ao lado de Obama, Putin e Xi Jinping. Todo o contrário do vizinho presidente francês, que, embora tendo um primeiro--ministro, quando o governo se reúne na sua presença é ele quem lidera. Mas mesmo sem a legitimidade do voto popular, e quase só com funções protocolares, seria um exagero afirmar que o presidente alemão é uma espécie de rainha de Inglaterra. É que ao contrário desta, pode dizer o que pensa. E, como o provou Joachim Gauck nestes quatro anos, costumam ser palavras com peso, como quando boicotou os Jogos de Sóchi ou criticou o autoritarismo de Erdogan durante uma visita à Turquia. Não é indiferente a esse peso que as palavras venham de alguém que toda a vida mostrou uma coragem física e uma determinação moral impressionantes.
Gauck anunciou agora que não se recandidatará a um segundo mandato em 2017. Tem 76 anos, uma idade que na política não obriga à reforma - basta pensar ainda há pouco tempo no octogenário Napolitano em Itália - , mas que também não dá garantias de vigor, como o próprio admitiu.
Na história alemã há precedentes, como Gustav Heinemann, presidente entre 1969 e 1974, que não procurou um segundo mandato com argumentos semelhantes. Ora, Gauck é um presidente na linha de Heinemann, colosso moral que, além de ter sempre recusado filiar-se no Partido Nazi, chegou a ser expulso, apenas com 20 anos, de uma sala onde Hitler estava, por protestar contra as diatribes antissemitas do futuro Führer.
Mas quando se fala de grandes presidentes é impossível não destacar Richard von Weizsäcker. Ficou para a história o discurso de 1985, na celebração dos 40 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, quando assumiu as responsabilidades dos alemães na destruição da Europa e no sofrimento dos judeus. Palavras de grande coragem cívica, vindas de um homem oriundo da aristocracia suábia, que esteve como soldado na invasão da Polónia (viu o irmão morrer a poucos metros) e ajudou o pai, alto diplomata, a defender-se no julgamento de Nuremberga. Foi um justo prémio que o segundo mandato tenha abrangido a reunificação de 1990, processo onde a sua estatura moral se conjugou na perfeição com o instinto político do chanceler Helmut Kohl e a perícia diplomática de Hans-Dietrich Genscher.
Também Gauck e Angela Merkel têm funcionado bem juntos. Mas foi preciso a demissão de um presidente por suspeita de fraude, para a chanceler finalmente aceitar o ex-pastor luterano, oriundo da RDA como ela. Assim, em 2012, dois dias depois da demissão de Christian Wulff que o tinha derrotado em 2010, foi eleito com os votos de todos os partidos, com exceção do Die Linke, herdeiro do antigo partido da Alemanha de Leste. Foram 90% dos votos das duas câmaras do parlamento reunidas, com os sociais-democratas e os verdes a conseguirem dessa vez que os democratas-cristãos e os liberais apoiassem Gauck, que se destacara como militante dos direitos humanos e que depois da queda do Muro de Berlim foi responsável pelos arquivos da STASI, a polícia política da extinta RDA.
A recusa do Die Linke em votar em Gauck tem que ver com a sua profunda aversão à ditadura comunista, que tem uma base muito pessoal: o pai foi enviado para um gulag na Sibéria e regressou inválido. E ele próprio viu ser-lhe rejeitada a possibilidade de estudar Literatura na universidade, optando então pela Teologia, tornando-se pastor em 1965, sempre sob vigilância apertada da STASI.
Sem filiação partidária, Gauck está longe, porém, de ser apolítico. No seu discurso estão sempre as preocupações de conciliar desenvolvimento económico com progresso social e ainda nesta crise dos refugiados criticou a inação da União Europeia. Sai e deixa um problema político a Merkel, logo em ano também de legislativas, mas sobretudo lança aos partidos o desafio de encontrar alguém que seja um presidente exemplar.