Presidente da ERC retira nome de Mário Mesquita de livro póstumo

"Só pode ser um erro. Uma pessoa quando morre não perde a autoria dos seus trabalhos". É assim que a filha de Mário Mesquita, vice-presidente da ERC desaparecido em maio de 2022, reage ao facto de o nome do pai ter sido retirado do livro no qual trabalhava quando morreu. A decisão foi do presidente do regulador, Sebastião Póvoas, que assumiu "inimizade grave" com Mesquita.
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"Desinformação - Contexto Europeu e Nacional, supervisão Mário Mesquita". É o que se lê no site brasileiro da editora Almedina, que indica 1 de outubro de 2022 como data de lançamento do livro e no qual está igualmente, referido como único autor na ficha técnica, o nome do ex-jornalista, intelectual e professor que até à sua morte, em maio de 2022, foi vice-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) até maio de 2022. A mesma informação se encontra nos sites da livraria Bertrand e da Wook.

Nestes três sites, na "sinopse" do livro, lê-se: "O presente estudo teve a sua génese em 2018. Uma primeira versão foi apresentada no Parlamento por Mário Mesquita, então vice-presidente da ERC. O professor deixou-nos abruptamente em maio de 2022 e a obra procura honrar o seu legado. Este livro decorre daquele primeiro exercício e visa atualizá-lo e funcionar como um espelho da evolução que as abordagens da desinformação foram sofrendo."

Várias pessoas que acompanharam o processo, mais ou menos diretamente, garantiram ao DN que Mário Mesquita esteve, até ao seu desaparecimento, a dirigi-lo, e era o "mentor do projeto". Isso mesmo confirma também Ana Mesquita, a sua filha: "Sabia, pelo meu pai, que o livro estava feito e tinha sido entregue para revisão de gralhas, formatações."

A Mário Mesquita - a quem o presidente da República atribuiu, a 31 de maio de 2022, postumamente, no velório, a Ordem da Liberdade, em penhor do que proclamou ter sido a sua "missão da vida" - é ainda reconhecida, por pessoa próxima com conhecimento interno da ERC e que pede para não ser identificada, a origem da coleção Regulação dos Media, que supervisionou até à morte e à qual pertence o livro em causa. "A coleção é uma criação do Mário. E quando ele morreu aquela obra estava bastante adiantada sob a sua supervisão".

Porém o livro que acabaria por chegar às livrarias, com data de janeiro de 2023, não tem qualquer nome na capa - ao contrário de todas as outras da coleção Regulação dos Media, que ostentam a identificação de quem coordenou ou superintendeu o trabalho. E na ficha técnica do livro surgem agora dois nomes na supervisão: Mário Mesquita e João Pedro Figueiredo, membro do Conselho Regulador da ERC.

De acordo com a informação recolhida pelo DN, João Pedro Figueiredo também terá, sobretudo a partir do momento em que Mário Mesquita, por doença, deixou de o poder fazer, trabalhado na supervisão do livro.

Com a morte de Mesquita, foi explicado ao jornal, a supervisão da coleção passou para o presidente da ERC, Sebastião Póvoas. Este, perante o facto de a capa entregue à editora ostentar o nome do vice-presidente, quis substituí-lo pelo de João Pedro Figueiredo, que recusou. A decisão terá sido então a de publicar o livro sem menção de autoria na capa.

Confrontado com as duas versões de capa e ficha técnica patentes até nos próprios sites da Almedina, Ricardo Monteiro, diretor editorial da editora, confirma: o nome de Mário Mesquita foi retirado por ordem da ERC. "A versão definitiva e única é a que não tem o nome do professor Mário Mesquita na capa. Houve uma versão em que o nome estava na capa e, a certa altura, foi retirado, por opção da ERC, que é quem coordena essa coleção."

Tendo requerido que outras perguntas, nomeadamente sobre a data em que foi dada a ordem da ERC, lhe fossem enviadas por escrito, o diretor editorial da Almedina acabou por não lhes responder até ao fecho deste texto. Ficou assim também por esclarecer se a primeira capa, com o nome de Mesquita, chegou a ser impressa e, sendo, em quantos exemplares -- e qual o custo inerente à reformulação.

Trata-se de uma questão em relação à qual a ERC se declara, na resposta enviada por escrito ao DN através do respetivo Departamento de Comunicação, "alheia": "Apenas uma versão do livro teve a aprovação para publicação. A ERC, como única titular dos diretos de autor desta obra em coautoria, é alheia à circulação de outras edições desta publicação que apresentem qualquer outro grafismo, e que não estejam em consonância com o acordado com a Editora Almedina."

A referida "coautoria" terá aliás sido, de acordo com esta explicação, o motivo da retirada do nome de Mário Mesquita: "No processo que antecede o lançamento de qualquer publicação é normal existirem, de forma continuada, adaptações no grafismo e conteúdos de texto. No caso em questão, uma das muitas situações que foi repensada foi a referência na capa aos responsáveis pela supervisão deste trabalho em perfeita igualdade, tendo-se optado por fazer essa menção apenas no interior da publicação, na respetiva ficha técnica."

Por que motivo, se se tratava de uma questão de coautoria, não foram colocados dois nomes na capa, a ERC não esclarece.

Como o DN já referiu, a ablação do nome de Mesquita foi da responsabilidade de Sebastião Póvoas, o juiz conselheiro que preside ao regulador: "A validação interna da versão final (capa+miolo) do livro Desinformação - Contexto Europeu e Nacional ocorreu a 6 de dezembro de 2022. Tratou-se de uma decisão assumida pelo Presidente da Entidade, que tem o pelouro das publicações editadas pela ERC."

Para a já citada pessoa próxima de Mesquita e conhecedora da vida interna da ERC, esta atitude de Póvoas é lida como "uma forma de mais uma vez elidir o Mário. O presidente cultivava em relação a ele uma "grave inimizade", que chegou a declarar formalmente."

Há até quem, conhecendo o processo de muito perto, use palavras mais agrestes - e dificilmente publicáveis - para classificar esta conduta de Póvoas, que em 2020 tinha alegado "inimizade grave" pelo então vice-presidente do órgão. Fê-lo para não se pronunciar, pedindo escusa, em relação a um incidente de suspeição suscitado pela Cofina em relação a Mesquita, através do qual este grupo, detentor do Correio da Manhã e da CMTV, queria impedi-lo de intervir em casos nos quais os títulos da empresa fossem visados.

Mais de dois anos depois, quando o mandato de Póvoas, como o dos restantes membros do conselho regulador - Fátima Lima, Francisco Azevedo e Silva e João Pedro Figueiredo -, terminava, o juiz retirou o nome de Mesquita da capa do livro.

Aliás, a data referida para essa decisão, 6 de dezembro, é precisamente aquela em que o conselho regulador foi ouvido no Parlamento, para apresentação do seu relatório de final do mandato de cinco anos.

Nesta audição, Póvoas foi confrontado pelos deputados, nomeadamente por Fernanda Velez, do PSD, com denúncias - que seriam secundadas por uma carta da Comissão de Trabalhadores da ERC, datada de 19 de dezembro - relativas à criação de um clima de terror, com existência de casos de assédio moral, ameaças de despedimento e de processos disciplinares e cessação de comissões de dirigentes, assim como de "falta de transparência e secretismo", com a atividade reguladora a ser "ditada por critérios de conveniência e convicções pessoais, em detrimento dos critérios de legalidade, isenção e objectividade" que a deviam nortear.

Sebastião Póvoas, em relação a quem existe desde maio uma queixa de assédio moral, por parte de um ex-funcionário da ERC que o acusa de "de feroz e incompreensível perseguição", a correr na Inspeção-Geral das Finanças (entidade com jurisdição para a apreciar), negou que existissem queixas dos trabalhadores "em relação ao que se passa na instituição", asseverando que "os trabalhadores da ERC são dos mais privilegiados face a outros, em termos salariais e outros".

Em reação, na carta enviada ao Parlamento a 19 de dezembro, os representantes dos 83 funcionários da instituição acusam o conselho regulador de criar "um ambiente tenso, de medo e de falta de liberdade de expressão", descrevendo um ambiente persecutório, "com ameaças mais ou menos veladas a quem se posicione, ou seja percecionado como estando a posicionar-se, de forma crítica" face às respetivas decisões, mencionando inclusive processos disciplinares em curso, que consideram carecer de "ancoragem jurídica e social" (o DN reportou, em dezembro, uma dessas situações).

Concluem lamentando, com "apreensão e tristeza", o adiamento da eleição de um novo conselho regulador - que esteve aprazada para 22 de dezembro -, lembrando: "A nossa tutela são os senhores deputados, que são o garante da responsabilização (accountability) daqueles que mandataram para um órgão constitucionalmente previsto, a que acresce o dever de zelar pelo saudável funcionamento desta instituição, acautelando que esta funciona democraticamente em prol da Democracia."

Ouvida pelo DN, Ana Mesquita considera que a ausência do nome do pai no livro "só pode ser um equívoco". "Deve ter sido um erro - uma pessoa quando morre não perde a autoria dos seus trabalhos. A instituição, a Entidade Reguladora para a Comunicação, deve reger-se por princípios éticos. Por isso deve ter havido um equívoco que irá ser esclarecido."

A eleição do novo conselho regulador está aprazada para o final desta semana.

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