Marcadas para a véspera de Natal, ainda não é certo que se venham a realizar por uma simples razão. A Líbia ainda não tem Constituição e arrisca eleger um Presidente que ainda não sabe que poderes terá. É aqui que a doutrina se divide (líderes tribais, civis e militares), sobre se a empreitada deverá avançar ou se deverá ser adiada até que, pelo menos, seja redigido um esboço de Constituição que possa ser levada a referendo popular, estabelecendo assim separação de poderes, os que competem ao PR a eleger, eivada também de uma sempre bem-vinda legitimação popular pré-eleitoral. Talvez por esta divisão doutrinária, o Enviado Especial das Nações Unidas para a Líbia, Ján Kubis, tenha apresentado esta semana a sua demissão sem, no entanto, a ter justificado até agora. Nações Unidas, cuja posição oficial é aliás, precisamente a de se manter a data de 24 de dezembro, virar a página e continuar a construir o edifício a partir do telhado. Por outro lado, a "tradição líbia" se assim se poderá chamar, nunca teve um Presidente. É verdade, foi monarquia após a independência (1951-1969) e o Coronel Muammar Kadhafi, apesar dos seus 42 anos à frente dos destinos do país entre 1969 e 2011, nunca teve o título de Presidente, apresentando-se sempre como Líder da Revolução, um ardil oficioso que sempre o escudou, numa primeira fase, do Tribunal Penal Internacional. Acusar quem, o Presidente? Se ele não existe! Numa segunda fase identificar-se-ia sempre a "origem do mal", por associação à cadeia de comando e aos efeitos causa/consequência, mas Kadhafi sempre deu mais trabalho que todos os outros..Saif al-Islam Kadhafi, o segundo filho do Coronel, apresentou a sua candidatura às presidenciais líbias a 13 de novembro, vestido da mesma forma com que o seu pai proferiu o icónico discurso de Bab al-Azizia na televisão nacional, em 2011, no qual prometia perseguir e "purificar os ratos (insurgentes na Cirenaica) zanga-zanga, beit-beit, chiber-chiber", em português "rua-a-rua, casa-a-casa, centímetro-a-centímetro". Este assombro para muitos e gáudio para tantos outros, veio também acompanhado de uma barba média-longa, de quem também precisa de agradar aos islamistas, confirmado por citações corânicas e não por um "discurso de leão", enquanto remate final deste regresso e apresentação de candidatura. Será Kadhafi filho um homem novo, um homem mudado? Perguntaram os líbios, algo inocentemente, perante esta aparição, após 10 anos de isolamento, apesar do simbolismo da indumentária, a qual não "representa" apenas o seu pai, pormenor que desenvolverei mais adiante..Em primeiro lugar, esclarecer desde já que esta candidatura apresentada no passado dia 13, já foi rejeitada, pelo que não deverá haver tempo útil para recursos e reviravoltas a menos de um mês da data marcada, caso se venham a realizar. As razões para este "cancelamento" devem-se ao facto de Kadhafi filho ter sido condenado à morte em 2015 por um Tribunal de Trípoli, mas logo indultado e libertado no ano seguinte pelo Governo de Trípoli apoiado e reconhecido pelas Nações Unidas. No entanto, a milícia de Zintan, que o capturou ainda em 2011, sempre se negou a entregá-lo ao Tribunal Penal Internacional, que ainda o procura por crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, continuando a pressionar o governo líbio para o entregar na Haia, afim de ser julgado. Permitir esta candidatura e eventual eleição, significaria a derradeira vingança do falecido líder da Jamahiriya líbia, o "Estado das Massas"..Em segundo lugar, referir a curiosidade de Saif al-Islam se traduzir para português como "Espada do Islão", aquela mesma patente na bandeira da Arábia Saudita, enquanto símbolo de justiça. E este nome, esta figura/personagem, actualmente divide mais do que une os líbios. Regressando à simbólica da indumentária com que se apresentou no dia 13, embrulhado num manto e num turbante castanho-areia, veste tradicional da grande província sul de Fezzan, é talvez a região do país onde conseguiria um maior consenso entre as várias tribos que a compõe, já que na ocidental Tripolitânia não cria união, apesar dos registos de reuniões que teve com líderes tribais, na tentativa de capitalizar as anteriores alianças do "tempo da outra senhora" e na oriental Cirenaica nem o quererem ver, já que representa toda a opressão exercida por seu pai durante 42 anos. Apesar disso, a percepção dos líbios, na Líbia, na possível sondagem do boca-a-boca e do diz-que-disse informal nos mercados, nas ruas e nos táxis, acreditam que chegando a uma segunda volta, teria fortes hipóteses de ganhar. Do ponto de vista internacional, caso fosse candidato, poderia mobilizar apoios e o interesse de italianos, franceses, ingleses e sobretudo dos vizinhos argelinos, que sempre lidaram bem com a constelação tribal Ashraf, da qual a Qadhadhfa, dos Kadhafi, faz parte..Em terceiro lugar, há o registo de um encontro secreto que teve em 2019, em Trípoli, no pico da guerra civil, com dois russos, detidos e interrogados nessa altura, os quais afirmaram que o supostamente isolado Saif al-Islam estava intrigado com a capacidade dos russos em manipulação de eleições. Este momento em 2019 em conjugação com o actual, é caracterizado por Anas el Gomati, do Sadeq Institute, como a "mãe de todas as ironias" o facto de Kadhafi filho estar hoje a tentar exercer um direito democrático, apesar de ter apoiado o brutal regime de Kadhafi pai na hora H em 2011, embora nos seus tempos de aluno na London School of Economics (2004-2008) ter esboçado um movimento pró-democracia com outros "líbios europeus", o que lhe valeu a aura de reformador. O que o filho tentou fazer com esta candidatura (entretanto rejeitada, insisto), foi explorar o sistema deixado por seu pai, o qual implodiu, deixando o país no seu estado mais vulnerável. Ou seja, o encontro com os russos apoiantes da Cirenaica, no coração da Tripolitânia, no pico dos confrontos mais ferozes, em nada parece inocente, sendo mesmo demonstrativo de que esta candidatura há muito que estaria programada e que pretenderia intoxicar o resultado final a seu favor, fosse de que maneira fosse..O Conselho Presidencial Líbio, responsável pela realização destas eleições, viu registadas nos seus serviços 98 candidaturas, das quais 25 já foram rejeitadas, incluindo a de Saif al-Islam Kadhafi, de Ali Zeidan(Primeiro-Ministro, 2012-2014) e de Nouri Abusahmain (Presidente Interino, 2013-2016)..Dos que sobraram há ainda mais dois candidatos que poderão ver rejeição próxima, deixando o palco para ilustres desconhecidos e por isso mesmo é muito provável que se mantenham até ao fim. Tratam-se das candidaturas do actualPrimeiro-Ministro Interino, Abdul HamidDbeibah, em representação da "Tripolitânia turca", o preferido das Nações Unidas e cujo problema administrativo é o facto de a lei eleitoral líbia o obrigar a renunciar ao cargo três meses antes da entrega do formulário, tendo-o efectuado no dia anterior ao final do prazo. O outro, trata-se do Marechal Khalifa Haftar, em representação da "Cirenaica russo-egípcia", sendo que se diz que este "senhor da guerra" também tem nacionalidade americana, para além da líbia. O mesmo nega este facto, mas qualquer um o negaria na posição de candidato. Esta dupla nacionalidade poderá custar-lhe esta candidatura..Curioso será perceber a posição das Nações Unidas, que não terá muita margem de manobra no meio deste antagonismo líbio, leste-oeste, que é também representativo dos interesses internacionais na Líbia..Duas certezas até agora nesta disputa eleitoral, após a rejeição da candidatura de Saif al-Islam Kadhafi. A primeira, que as opções do eleitorado nunca serão entre quem é apologético de um regresso ao passado e de quem quer em definitivo virar a página e ultrapassá-lo. Para já, as opções mais antagónicas e mobilizadoras do voto, são ambas pós-Kadhafi, o que nos remete para a segunda certeza, já que a confirmarem-se as candidaturas de Dbeibah e de Haftar, um turcófono e outro russófono, nenhuma terá a capacidade de promover a unificação, perpetuando assim este mexican stand off entre tripolitanos e cirenaicos, que continuarão de armas apontadas uns aos outros, sem que qualquer uma das partes consiga dominar a outra, pelo menos através de caminhos que não envolvam de novo uma guerra generalizada. Por outro lado, e para finalizar uma outra incerteza, a de que é possível que quando tiver terminado esta leitura, a lógica tenha mudado de novo, desde o título até aqui, com o cancelamento, sem aspas, destes candidatos, representativos do grande jogo em curso na actual Líbia..Politólogo/Arabista.www.maghreb-machrek.pt.O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
Marcadas para a véspera de Natal, ainda não é certo que se venham a realizar por uma simples razão. A Líbia ainda não tem Constituição e arrisca eleger um Presidente que ainda não sabe que poderes terá. É aqui que a doutrina se divide (líderes tribais, civis e militares), sobre se a empreitada deverá avançar ou se deverá ser adiada até que, pelo menos, seja redigido um esboço de Constituição que possa ser levada a referendo popular, estabelecendo assim separação de poderes, os que competem ao PR a eleger, eivada também de uma sempre bem-vinda legitimação popular pré-eleitoral. Talvez por esta divisão doutrinária, o Enviado Especial das Nações Unidas para a Líbia, Ján Kubis, tenha apresentado esta semana a sua demissão sem, no entanto, a ter justificado até agora. Nações Unidas, cuja posição oficial é aliás, precisamente a de se manter a data de 24 de dezembro, virar a página e continuar a construir o edifício a partir do telhado. Por outro lado, a "tradição líbia" se assim se poderá chamar, nunca teve um Presidente. É verdade, foi monarquia após a independência (1951-1969) e o Coronel Muammar Kadhafi, apesar dos seus 42 anos à frente dos destinos do país entre 1969 e 2011, nunca teve o título de Presidente, apresentando-se sempre como Líder da Revolução, um ardil oficioso que sempre o escudou, numa primeira fase, do Tribunal Penal Internacional. Acusar quem, o Presidente? Se ele não existe! Numa segunda fase identificar-se-ia sempre a "origem do mal", por associação à cadeia de comando e aos efeitos causa/consequência, mas Kadhafi sempre deu mais trabalho que todos os outros..Saif al-Islam Kadhafi, o segundo filho do Coronel, apresentou a sua candidatura às presidenciais líbias a 13 de novembro, vestido da mesma forma com que o seu pai proferiu o icónico discurso de Bab al-Azizia na televisão nacional, em 2011, no qual prometia perseguir e "purificar os ratos (insurgentes na Cirenaica) zanga-zanga, beit-beit, chiber-chiber", em português "rua-a-rua, casa-a-casa, centímetro-a-centímetro". Este assombro para muitos e gáudio para tantos outros, veio também acompanhado de uma barba média-longa, de quem também precisa de agradar aos islamistas, confirmado por citações corânicas e não por um "discurso de leão", enquanto remate final deste regresso e apresentação de candidatura. Será Kadhafi filho um homem novo, um homem mudado? Perguntaram os líbios, algo inocentemente, perante esta aparição, após 10 anos de isolamento, apesar do simbolismo da indumentária, a qual não "representa" apenas o seu pai, pormenor que desenvolverei mais adiante..Em primeiro lugar, esclarecer desde já que esta candidatura apresentada no passado dia 13, já foi rejeitada, pelo que não deverá haver tempo útil para recursos e reviravoltas a menos de um mês da data marcada, caso se venham a realizar. As razões para este "cancelamento" devem-se ao facto de Kadhafi filho ter sido condenado à morte em 2015 por um Tribunal de Trípoli, mas logo indultado e libertado no ano seguinte pelo Governo de Trípoli apoiado e reconhecido pelas Nações Unidas. No entanto, a milícia de Zintan, que o capturou ainda em 2011, sempre se negou a entregá-lo ao Tribunal Penal Internacional, que ainda o procura por crimes de guerra e crimes contra a Humanidade, continuando a pressionar o governo líbio para o entregar na Haia, afim de ser julgado. Permitir esta candidatura e eventual eleição, significaria a derradeira vingança do falecido líder da Jamahiriya líbia, o "Estado das Massas"..Em segundo lugar, referir a curiosidade de Saif al-Islam se traduzir para português como "Espada do Islão", aquela mesma patente na bandeira da Arábia Saudita, enquanto símbolo de justiça. E este nome, esta figura/personagem, actualmente divide mais do que une os líbios. Regressando à simbólica da indumentária com que se apresentou no dia 13, embrulhado num manto e num turbante castanho-areia, veste tradicional da grande província sul de Fezzan, é talvez a região do país onde conseguiria um maior consenso entre as várias tribos que a compõe, já que na ocidental Tripolitânia não cria união, apesar dos registos de reuniões que teve com líderes tribais, na tentativa de capitalizar as anteriores alianças do "tempo da outra senhora" e na oriental Cirenaica nem o quererem ver, já que representa toda a opressão exercida por seu pai durante 42 anos. Apesar disso, a percepção dos líbios, na Líbia, na possível sondagem do boca-a-boca e do diz-que-disse informal nos mercados, nas ruas e nos táxis, acreditam que chegando a uma segunda volta, teria fortes hipóteses de ganhar. Do ponto de vista internacional, caso fosse candidato, poderia mobilizar apoios e o interesse de italianos, franceses, ingleses e sobretudo dos vizinhos argelinos, que sempre lidaram bem com a constelação tribal Ashraf, da qual a Qadhadhfa, dos Kadhafi, faz parte..Em terceiro lugar, há o registo de um encontro secreto que teve em 2019, em Trípoli, no pico da guerra civil, com dois russos, detidos e interrogados nessa altura, os quais afirmaram que o supostamente isolado Saif al-Islam estava intrigado com a capacidade dos russos em manipulação de eleições. Este momento em 2019 em conjugação com o actual, é caracterizado por Anas el Gomati, do Sadeq Institute, como a "mãe de todas as ironias" o facto de Kadhafi filho estar hoje a tentar exercer um direito democrático, apesar de ter apoiado o brutal regime de Kadhafi pai na hora H em 2011, embora nos seus tempos de aluno na London School of Economics (2004-2008) ter esboçado um movimento pró-democracia com outros "líbios europeus", o que lhe valeu a aura de reformador. O que o filho tentou fazer com esta candidatura (entretanto rejeitada, insisto), foi explorar o sistema deixado por seu pai, o qual implodiu, deixando o país no seu estado mais vulnerável. Ou seja, o encontro com os russos apoiantes da Cirenaica, no coração da Tripolitânia, no pico dos confrontos mais ferozes, em nada parece inocente, sendo mesmo demonstrativo de que esta candidatura há muito que estaria programada e que pretenderia intoxicar o resultado final a seu favor, fosse de que maneira fosse..O Conselho Presidencial Líbio, responsável pela realização destas eleições, viu registadas nos seus serviços 98 candidaturas, das quais 25 já foram rejeitadas, incluindo a de Saif al-Islam Kadhafi, de Ali Zeidan(Primeiro-Ministro, 2012-2014) e de Nouri Abusahmain (Presidente Interino, 2013-2016)..Dos que sobraram há ainda mais dois candidatos que poderão ver rejeição próxima, deixando o palco para ilustres desconhecidos e por isso mesmo é muito provável que se mantenham até ao fim. Tratam-se das candidaturas do actualPrimeiro-Ministro Interino, Abdul HamidDbeibah, em representação da "Tripolitânia turca", o preferido das Nações Unidas e cujo problema administrativo é o facto de a lei eleitoral líbia o obrigar a renunciar ao cargo três meses antes da entrega do formulário, tendo-o efectuado no dia anterior ao final do prazo. O outro, trata-se do Marechal Khalifa Haftar, em representação da "Cirenaica russo-egípcia", sendo que se diz que este "senhor da guerra" também tem nacionalidade americana, para além da líbia. O mesmo nega este facto, mas qualquer um o negaria na posição de candidato. Esta dupla nacionalidade poderá custar-lhe esta candidatura..Curioso será perceber a posição das Nações Unidas, que não terá muita margem de manobra no meio deste antagonismo líbio, leste-oeste, que é também representativo dos interesses internacionais na Líbia..Duas certezas até agora nesta disputa eleitoral, após a rejeição da candidatura de Saif al-Islam Kadhafi. A primeira, que as opções do eleitorado nunca serão entre quem é apologético de um regresso ao passado e de quem quer em definitivo virar a página e ultrapassá-lo. Para já, as opções mais antagónicas e mobilizadoras do voto, são ambas pós-Kadhafi, o que nos remete para a segunda certeza, já que a confirmarem-se as candidaturas de Dbeibah e de Haftar, um turcófono e outro russófono, nenhuma terá a capacidade de promover a unificação, perpetuando assim este mexican stand off entre tripolitanos e cirenaicos, que continuarão de armas apontadas uns aos outros, sem que qualquer uma das partes consiga dominar a outra, pelo menos através de caminhos que não envolvam de novo uma guerra generalizada. Por outro lado, e para finalizar uma outra incerteza, a de que é possível que quando tiver terminado esta leitura, a lógica tenha mudado de novo, desde o título até aqui, com o cancelamento, sem aspas, destes candidatos, representativos do grande jogo em curso na actual Líbia..Politólogo/Arabista.www.maghreb-machrek.pt.O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.