Presença profunda e mágica

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O Anjo (1998) de Paula Rego encontra-se exposto na Fundação Gulbenkian com O Banho Turco (1960), para assinalar um ano sobre o momento em que a pintora nos deixou. "É uma grande felicidade para mim (disse ela) saber que dois dos meus quadros mais importantes vão viver na Gulbenkian. A Gulbenkian apoiou-me quando eu mais necessitava de apoio. Eu sei que vão tomar conta do meu anjo e espero que lhes traga a sorte e o conforto que merecem". O Anjo faz parte da série "O Crime do Padre Amaro" e aí está representada a revolta íntima que a artista sente relativamente ao destino de Amélia, personagem central do romance. O facto de a pintora adaptar o desfecho do romance, no sentido de privilegiar o mistério e o inconformismo, ilustra bem como Paula utiliza a transposição das narrativas, designadamente nos contos tradicionais, como forma de melhor fazer compreender o género humano e de contribuir, num mundo opressivo, para o respeito por uma humanidade justa.

Deparamo-nos com a figura de uma mulher que "vinga a rapariga que morreu. É uma invenção minha" - como confessou a pintora. Sabemos que Eça de Queiroz hesitou quanto ao fim a dar ao romance e Machado de Assis foi especialmente crítico relativamente à narrativa e ao desfecho. Contudo, O Anjo é um verdadeiro símbolo que representa a preocupação de Paula Rego na defesa da dignidade humana, em especial relativamente às mulheres e aos seus direitos. E como "invenção" da própria, esta põe a ênfase numa simbologia que vai às raízes cristãs, ainda que os atributos não sejam diretamente religiosos. Contudo, como salienta Helena de Freitas, trata-se de uma "mulher bem terrena, vingadora e piedosa, segurando nas mãos uma espada e uma esponja, dois dos símbolos da Paixão de Cristo". É certo que não é um autorretrato, mas há uma referência pessoal e própria, "que se identifica com um retrato interventivo do seu trabalho: entre a proteção e a vingança, o castigo e o perdão".

Pode assim dizer-se que não é por acaso que O Anjo tem uma ligação tão grande a Paula Rego, a ponto de esta ter confessado um especial afeto relativamente a ele. Representa, por isso, uma chave de interpretação para o compromisso que encontramos na obra da artista. Anjo da guarda e vingador, eis uma representação paradoxal da vida, entre a obsessão amorosa e o amor - o confronto entre sentimentos contraditórios, a curiosidade insaciável, o desejo de ir ao encontro do mistério, a procura de uma arte reveladora das tensões entre os sentimentos e desejos. Quando ouvimos Nick Willing, filho de Paula, evocar sentidamente sua mãe, recordando um testemunho de liberdade, compreendemos por que razão desejou que assinalássemos o primeiro ano da sua partida de um modo festivo na Gulbenkian e em continuidade da defesa das boas causas que foram as da artista na arte, na cultura e na justiça. Se dúvidas houvesse, bastaria interrogarmo-nos sobre o conjunto da obra de Paula Rego, onde encontramos outras figuras de Anjos e também de mulheres, com evidente proximidade a esta representação. Como afirmou o bispo D. Carlos Azevedo, a propósito do ciclo da vida da Virgem Maria (datado de 2004), pintado para a capela do Palácio de Belém, Paula Rego "inquieta-nos sobre o sentido da vida e põe-nos no umbral do Mistério, atraídos por uma beleza interpelante". Qualquer que seja a interpretação das obras a partir de agora presentes na Fundação Gulbenkian, o certo é que o tema em causa é a importância da mulher como participante ativa no mundo. "Queria aprender a ser como eles. Queria fazer parte daquele mundo", como dirá Paula sobre os colegas da Slade School no depoimento do filme Histórias & Segredos de Nick Willing (2017). Este universo criativo é de uma tão extraordinária riqueza que tem de ser celebrado com entusiasmo e vida - como "qualquer coisa profunda e mágica".

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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