Preparar à noite o pão que é servido fresco durante o dia

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Aprendiz de padeiro. Existem em Portugal quatro escolas de formação no sector da panificação. No entanto, é nas padarias que a maioria dos padeiros aprende a profissão. Na fábrica da Padaria Ribeiro - uma das mais antigas do Porto - fui aceite como aprendiz. Bastou um turno para perceber que esta é uma profissão dura e mal remunerada. No fim do mês levaria para casa pouco mais de 350 euros

Levantar às quatro da madrugada para fazer pão, de forma a que chegue ao consumidor às primeiras horas da manhã, faz parte do passado. À medida que as sociedades se transformam, evoluem as suas necessidades e desejos. Actualmente, o cliente procura pão acabado de sair do forno, o que obrigou as panificadoras a adaptarem-se, quer em equipamentos quer em horários. Salvo raras excepções, nomeadamente em zonas rurais, o fabrico começa ao fim do dia e termina às primeiras horas da madrugada seguinte. Isto porque em vez de ser cozido na fábrica, vai cru para as lojas, onde é levado ao forno de acordo com a procura. Uma forma de haver pão fresco, isto é, quente, ao longo do dia. Como diz o povo, também neste sector a tradição já não é o que era.

Para me aperceber desta realidade, contactei uma das mais antigas e famosas padarias do Porto - a Padaria Ribeiro, fundada no século XIX, hoje com três lojas: uma na Baixa, outra na Foz e a mais recente em Matosinhos. Após várias tentativas, fui aceite como aprendiz de padeiro. Um trabalho duro, com movimentos quase mecânicos e, geralmente, mal pago - entre os 400 e os mil euros mensais.

Cheguei à fábrica, localizada na zona industrial de Ermesinde, pouco depois das 17.30, apesar do meu turno iniciar a laboração uma hora depois. Queria tomar contacto como este "novo mundo" antes dos outros trabalhadores chegarem, além de ser necessário cumprir regras de higiene e vestir a farda (calças, T-shirt e boné brancos), por isso optei por chegar mais cedo.

Toquei à campainha . "Quem é?", perguntarem através do intercomunicador. "Venho para trabalhar. Falei com o senhor Afonso Vieira [um dos proprietários ] e devem estar a contar comigo hoje", respondi. "Sou o próprio, faça o favor de entrar", disse.

Acabava de entrar para um mundo completamente desconhecido para mim, com o qual só tinha tomado contacto apenas como cliente, sobretudo em padarias "pão quente" entre a saída de uma qualquer discoteca e o regresso a casa, depois de uma noite em que, normalmente, só se bebe. Mas sempre do lado de fora e no tempo em que as casas de diversão nocturna fechavam antes das seis da madrugada. Hoje isso já não acontece, porque quando as discotecas encerram (a maioria depois das sete da manhã) já cafés e confeitarias - muitos fornecidos por padarias - estão abertos.

Afonso Vieira encaminhou-me para uma sala no primeiro andar do edifício, onde me deu as primeiras instruções. E aí o primeiro alerta, depois de me observar de alto a baixo: "Vê-se que não está habituado a isto, não sei se vai aguentar... Vamos lá ver."

Um funcionário administrativo entra na sala e entrega-me a farda, no preciso momento em que chega o chefe encarregado de fabrico, Fernando Ferreira que, com 32 anos, conta já dez ao serviço da Padaria Ribeiro. Eram 18.05.

Feitas as apresentações, dirijo-me para os vestiários para trocar de roupa. Chegam, entretanto, Vladimir Strakhov (41 anos, imigrante russo em Portugal desde 2001), Tiago Sousa (18 anos, há dois a trabalhar na indústria panificadora) e Pedro Santos (28 anos, desde os 13 no sector).

Um dos funcionários daquele turno estava de folga, por isso seria aquele grupo de quatro pessoas (mais eu) que iria fabricar mais de 13 mil unidades de pão de 47 qualidades diferentes e 12 broas de milho. "Vamos sair daqui de manhã", pensei. Mas logo o Pedro, há três meses na Ribeiro, tentou encorajar-me: "Vai tudo correr bem, à uma da manhã está tudo pronto." Confesso que duvidei de tanto optimismo...

Descemos ao piso 1 e entramos nas duas salas de fabrico. Eram 18.30. Tiago, Pedro e eu começamos por limpar tabuleiros e enformadores, entretanto vindos das três lojas Ribeiro de venda ao público. Vladimir e Fernando procediam a outras tarefas necessárias ao início da produção.

Terminada a limpeza dos tabuleiros e enformadores, fui de imediato ajudar a partir pão que tinha sobrado do dia anterior para fazer pão ralado. "Aqui nada se perde, tudo se transforma", explicou Fernando.

Finalizada aquela tarefa, era necessário ir ao armazém buscar os sacos de farinha para fazer a primeira massa. Cada um pesa 25 quilos (sorte a minha, porque normalmente são de 50 quilos!). Os sacos são transportados num carinho até à sala de fabrico. Às 18.45, Fernando pede-me para o ajudar a deitar na máquina amassadora 75 quilos de farinha de trigo e um quilo e meio de sal. Juntamo-lhe 60% de água e 1% de um produto a que dão o nome de "melhorante" - serve para dar consistência ao pão e impedir que vá abaixo após sair do forno. Finalmente, a meio do processo de amassamento (cerca de 15 minutos) junta-se 3% de fermento e um pouco de gelo picado para manter a massa a uma temperatura de 23.o centígrados. São estes os ingredientes e as etapas para as famosas carcaças da Padaria Ribeiro.

Pronta a massa, é colocada em cima de uma mesa de grandes dimensões, onde Vladimir a corta e pesa para que os restantes façam os empelos - nome dado a uma bola de massa que, depois, é colocada na máquina divisora da qual saem trinta unidades arredondadas. Cada empelo pesa 1,7 quilos.

Essas pequenas unidades são colocadas numa passadeira rolante, sempre com muita farinha. Passam por uma máquina que lhes dá a forma da carcaça. Retiradas por Fernando, Pedro e por mim, são colocadas em tabuleiros (vinte em cada) que serão guardados numa estufa para ganhar volume e impedir a formação de "pele". Aí ficarão até serem levados para os camiões que os transportarão depois às lojas da Baixa e da Foz, as primeiras a serem fornecidas. As que vão para Matosinhos são guardadas numa câmara de frio para manterem as qualidades inalteradas, pois esta loja é a última a ser servida.

Entretanto, já tinha estado noutra sala a ajudar a preparar a massa para fazer pão de mistura. Aliás, os pães com cereais, porque se aguentam mais tempo, assim como a broa e o pão de forma, são os únicos cozidos ali na fábrica, sendo levados pelos camionistas em caixas apropriadas ao mesmo tempo que o pão que será depois cozido nas lojas.

Fazem-se dezenas de diferentes formas de pão. Redondos, pequenos e grandes, cilíndricos, de vários tamanhos, espalmados, pães de leite, bicos de pato... Tentava acompanhar o ritmo, mas enquanto fazia um, qualquer um dos outros fazia, pelo menos, cinco. Quase sempre em silêncio, ao som de uma rádio com música popular. "Assim terminamos mais rápido", explicou Tiago, que teve de abandonar definitivamente a escola aos 16 anos para poder ajudar financeiramente a família. Mas este jovem tem um sonho: tirar um curso. Adora futebol, "sabe tudo sobre os jogadores", disse Pedro, que o incentiva a prosseguir os estudos. "Dava um bom jornalista desportivo." O mesmo lhe diz a madrinha, confessa.

São 22.30. Hora para um intervalo de apenas 15 minutos, o suficiente para comer pão com manteiga e beber café. "Oferta do patrão", explica Fernando. É também nesta pausa que os fumadores aproveitam para queimar um cigarro. E para eu poder descansar o corpo - os braços e as costas começavam a dar sinais de cansaço. Este era o primeiro, e único, momento de descontracção (depois de três horas de movimentos quase mecânicos, apesar de manuais) até ao fim de toda a produção.

Às 23.00 voltamos às salas de fabrico. Os amassadores tinham ficado a trabalhar e a massa estava quase pronta. Recomeça o trabalho e fazem-se regueifas. Para isso foi preparada outra máquina para espalmar a massa. Mas só isso, porque o entrelaçar dos pequenos rolos que dão forma àquele pão é feito manualmente.

No ar há alguma farinha. Pode causar alguma irritação, mas o pior é o "melhorante", o tal produto usado no fabrico do pão. "É preciso ter cuidado, sobretudo com os olhos", disse Fernando.

Com o passar das horas, alguns tabuleiros são retirados da estufas e levados para os camiões, um assinalado com o cartaz "Foz", outro com "Baixa".

No forno são colocadas broas. Mais tarde, é a vez do pão de forma. Cerca de vinte minutos depois, a massa está cozida.

Nesta noite, foram feitas 13 086 unidades de pão, das mais diversas qualidades. Baguete francesa, bijou, rocas, coração, vikorn, sésamo, centeio, chapatas, prokorn, integral... Foram 47 qualidades diferentes de pão, incluindo bases de pizza e pão para hambúrguer, além das carcaças e regueifas, já referidas.

Cerca da meia-noite começam as limpezas de máquinas, mesas e balcões. Mas o trabalho de panificação ainda não tinha acabado. Nos fornos estavam sêmeas e faltava ainda fazer o pão de água. Sempre pensei que tinha esta designação por conter mais água do que os outros, mas não. É mergulhado em água e passado depois por farinha.

Confesso que quando cheguei a esta parte já não podia ver pão à minha frente, apesar da fome. Mas aguentei. Em vinte minutos foram feitos 1940 unidades deste pão, o segundo mais procurado nas lojas da Padaria Ribeiro.

Passavam vinte minutos das zero horas quando começam as limpezas finais. Era necessário deixar tudo pronto para o próximo turno, desta vez de pastelaria. Lembrei-me do que o Pedro me dissera ao início. Acertou na sua previsão: faltavam dez minutos para a uma da manhã e o trabalho estava feito.

Acabado o turno, todos se preparam para regressar a casa, depois de tomado banho nas instalações da fábrica. Todos querem chegar o mais rápido possível, até porque a fome aperta.

No entanto, nem todos se deslocam da mesma maneira, nem têm em casa a refeição preparada. Tiago, apesar de morar em Ermesinde, tem de esperar que o pai chegue para o levar a casa, pois àquela hora não tem transporte público. Mas ao chegar a casa terá o jantar já preparado pela mãe.

Já o Pedro, a viver com os pais no Porto, desloca-se em viatura própria. Quando chega a casa, este jovem, praticante de capoeira, também terá o jantar pronto, tal como Fernando, que vive em Gaia e faz o percurso da fábrica até casa de carro.

Sorte diferente tem Vladimir. Sem viatura própria, tem de percorrer a pé a estrada que o leva ao centro de Ermesinde para apanhar um autocarro para o centro do Porto. Quando chegar, ainda vai preparar a sua refeição, uma vez que reside sozinho - a mulher chegou a estar em Portugal, mas regressou à Rússia. "Não se adaptou."

Era 01.30 quando cheguei à Foz. Entrei num conhecido restaurante perto de casa, de onde quatro amigos já estavam de saída. Depois de pagar a conta (32 euros), cerca das três da manhã, pus-me a fazer contas. Infelizmente, o que um aprendiz de padeiro ganha num dia de trabalho não é suficiente para pagar um só jantar fora de casa.|

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