Praias de areia fina deram lugar a um leito de pedras
paula ferreira
Numa extensão de mais de 15 quilómetros, entre Viana do Castelo e Esposende, o mar varreu toda a areia. Onde existiam finos areais prateados estão agora montes de pedras. Onde existem casas, o risco é iminente. Algumas estão já debruçadas sobre falésias escavadas pelas ondas, com os alicerces à vista, num frágil equilíbrio. Ninguém sabe durante quanto mais tempo será possível salvá-las. A protecção deixou, aliás, de ser a preocupação. Agora defende-se que a natureza deve seguir o seu curso.
A história é o argumento usado. O litoral passou a ser encarado como uma realidade dinâmica, com avanços e recuos. "O mar já esteve no Monte de S. Lourenço" lembra o director da Área Protegida do Litoral de Esposende, espaço que há uma semana recebeu o estatuto de Parque Natural do Litoral Norte. É verdade. Estudos geológicos comprovaram que o oceano, após a primeira glaciação, banhava a serra de Santa Justa, em Valongo. Fósseis e marcas de ondas atestam a presença do mar a mais de uma dezena de quilómetros da actual linha de costa.
Hoje, no entanto, realidade é diversa. Décadas de anarquia urbanística transformaram o litoral numa zona de risco. Vasco Viana, proprietário de uma casa em S. Bartolomeu do Mar, pendurada sobre o que resta da praia, perguntou um dia ao então ministro do Ambiente, Isaltino Morais, o que faria se a sua casa estivesse à beira da derrocada. "O sr. Isaltino respondeu-me que faria tudo para a proteger." Este curto diálogo ocorreu a 14 de Fevereiro de 2003. Nesse dia o Governo foi a Esposende apresentar a solução para todos os problemas da costa portuguesa. A poção mágica chamava-se Programa Finisterra. Dois anos depois o programa foi extinto e não há nada que mereça registo.
Solução para o problema do litoral parece não haver. Duarte Figueiredo faz um retrato nada animador da costa portuguesa. Ao largo de Esposende, nem o próprio mar tem areia. "No fundo do oceano só encontramos pedra, limos e restos de conchas". Sem areia no mar, só por milagre ou por agentes externos as praias voltarão a ser o que eram.
Há dois anos, na mediática praia de Moledo, em Caminha, no extremo norte de Portugal, um Inverno violento deixou a estância balnear à beira do colapso. Uma intervenção de emergência, com carregamento de areia, foi a solução encontrada. As condições climatéricas colaboraram e, até agora, o areal manteve-se estável.
A sul o problema é diferente. O mar tem subido dezenas de metros. Os moradores de S. Bartolomeu do Mar falam em 20 metros, nuns locais, 30 noutros. Manuel Capitão, proprietário do café Marimar, sintetiza o problema. " A natureza não quer que se lhe toque." Ele e os seus conterrâneos também recusam que toquem nos seus bens. A possibilidade de demolição das casas - em S. Bartolomeu do Mar 26 construções poderão ir abaixo - não é vista com bons olhos. "Somos contra. Estamos a favor que se proteja, que se defenda." Todavia, há pouco a defender. A porta do café abre-se para uma vedação vermelha e branca, colocada por técnicos da área protegida, a sinalizar o perigo. Para lá da cerca, a areia esboroa-se. Em baixo está o mar calmo de uma tarde abrasadora de Junho.
culpados. Quando vierem as marés vivas, já em Agosto e depois no rigoroso Inverno do Norte, a duna primária desaparecerá mais um pouco até o mar "entrar pelos campos dentro", como prevê um indivíduo sentado a uma mesa do café. Vai participando na conversa, mas recusa dar a cara. " O meu nome no jornal? Não quero." Aponta culpados. Nada de novo. A culpa é dos esporões de Castelo do Neiva que retêm a areia que devia alimentar as praias a sul.
Já João Cepa, presidente da Câmara de Esposende, aponta o dedo à EDP e ao porto de Viana. A primeira faz uma gestão das barragens sem ter em conta o caudal dos rios. "A água é tão pouca que não tem força para transportar os sedimentos", afirma o autarca. A que vem rio abaixo é dragada junto à Foz do Lima e vai alimentar areeiros ou fica retida nos paredões do porto de Viana do Castelo.
Durante anos o avanço do mar foi contrariado com a construção de obras de engenharia pesada. De Viana à Figueira da Foz, sucedem-se esporões que retêm a areia e emagrecem as praias situadas a sul. Hoje deixaram de ser vistos como solução e passaram a ser encarados como a origem do problema. Ainda no concelho de Esposende, na margem esquerda do rio Cávado, metade do esporão das Pedrinhas foi demolido.
"Desde que mandaram 50 metros abaixo, isto melhorou muito", reconhece Adelino Ribeiro, pescador da Apúlia. Enquanto, meticulosamente, corta sardinhas para alimentar os gatos que lhe rondam as pernas, este homem do mar diz não acreditar nas demolições.
Na freguesia da Apúlia, nos lugares de Pedrinhas, Couve e Cedovém, estão inventariadas quase três centenas de construções para demolir, entre apoios de pesca, restaurantes e casas de férias. Este homem, que faz do largo de Esposende o seu ganha-pão, a apanhar polvo, robalo e sardinha, não contesta a decisão de deitar os edifícios abaixo, grande parte deles clandestinos. Só que essa é uma notícia com mais de 20 anos e sempre que se volta a falar dela todos sorriem com um encolher de ombros.
torres . O pescador aponta as segundas habitações "Aqueles ali são de Barcelos, aquela, mais à frente, é de umas pessoas do Porto" e as outras ainda mais adiante, próximo de Ofir, têm aos pés uma muralha de pedras para amortecer a força do mar. As três torres, que um dia o então ministro do Ambiente, José Sócrates, quis demolir, continuam firmes cada vez mais chegadas ao mar. O autarca de Esposende mantém a implosão das três torres de 13 andares, com 114 apartamentos, no Plano Estratégico do Litoral de Esposende. Mas sobre esse projecto não voltou a ouvir falar. "O senhor primeiro-ministro agora tem mais com que se preocupar", admite o autarca, que nunca defendeu a demolição dos prédios. "Há acções prioritárias."
Uma dessas acções é a protecção da restinga, o cordão dunar que protege a cidade de Esposende do avanço do mar. Uma ruptura nesse "muro" natural seria trágica. Daí o chumbo dos esporões projectados para a foz do Cávado, reclamados pelos pescadores de Esposende. O Ministério do Ambien- te autorizou apenas o desassoreamento da barra, o que nunca avançou por falta de interesse do Instituto Marítimo e Portuário.
De novo na Apúlia, na dezena de restaurantes que bordejam a estrada, todos debaixo da ameaça da demolição, ninguém acredita que um dia venham abaixo. "O que será da Apúlia sem este comércio?", pergunta Paula Sousa. A proprietária de um afamado estabelecimento de restauração tem dificuldade em perceber porque querem destruir os restaurantes quando deixam construir, do outro lado da rua, moradias de luxo. O slogan promocional convidava potenciais compradores a "viver com o mar a seus pés". Não podiam ser mais rigorosos.
muralha de betão. Para lá dos restaurantes e abrigos de pescadores, junto aos moinhos de vento da Apúlia, para sul, surge o paradigma do urbanismo nacional. Uma muralha de betão segue imperturbável até à foz do rio Ave e prossegue depois quase até Ovar, pontuada aqui e ali por diminutas manchas verdes, cada vez menos viçosas - o avanço do mar e a intrusão salina matam lentamente a pouca vegetação que resiste. A par de um discurso político que interiorizou a necessidade de preservar a orla costeira, os projectos imobiliários não param.
Em Vila do Conde é o próprio Ministério do Ambiente, através do programa Polis, que dá a última machadada nas dunas que ainda coexistiam com o avanço do imobiliário. Metade de área natural, entre a Avenida do Ferrol e Forte de S. João Baptista, deu lugar a um tapete de betão. Em breve, desde que os promotores privados decidam investir, surgirão restaurantes, discotecas... tudo avalizado pelas assinaturas dos arquitectos Siza Vieira e Souto Moura.
Na povoação piscatória de Caxinas, a estrada marginal, ainda no âmbito do Polis, foi alargada. À falta de espaço, houve que ir buscar os últimos metros quadrados livres ao areal. Quem faz parte da comunidade piscatória ou as centenas de pessoas que diariamente ali praticam marcha, para cuidar do corpo, aplaudem "Está muito bonito". Esta é também a opinião do pescador António Viana. Reformado, deixou para trás a pesca do bacalhau na Gronelândia.
As terríveis tempestades, que o fizeram avistar a morte, são apenas uma recordação para contar aos companheiros que consigo jogam à bisca, num abrigo improvisado, enquanto as obras do Polis não substituem o antigo, inaugurado há muitos anos pelo autarca socialista Mário Almeida. "Isto está muito bonito, mas lá que roubaram dois metros à praia, lá isso roubaram".
Outros dirão o mesmo, daqui a uns anos, noutras praias. O passado mostrou-nos que ninguém aprendeu a lição. A próxima vítima será o litoral de Gaia. Está escrito que os contestados molhes do Douro, em construção, irão reter a areia que deveria alimentar as praias a sul.