Povo sai à rua e une-se a militares para tirar Mugabe do poder

ZANU-PF, partido no poder, reúne-se hoje para destituir o presidente e reintegrar o vice-presidente Emmerson Mnangagwa.
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Para uns é uma Primavera Zimbabueana, para outros uma segunda libertação, depois do fim em 1980 do regime racista branco de Ian Smith que foi um prolongamento do domínio colonial britânico. Ontem, milhares de pessoas - homens, mulheres e crianças - saíram às ruas de Harare para pedir a saída de Robert Mugabe do poder, depois de na quarta-feira os militares terem assumido o controlo do país. Depois do povo, hoje deve ser a própria ZANU-PF, o partido do presidente, a destituí-lo, numa reunião do comité central que deverá reintegrar Emmerson Mnangagwa, o vice-presidente que Mugabe afastara, irritando os militares.

O mesmo encontro deve decretar o afastamento de Grace Mugabe da liderança da Liga das Mulheres da ZANU-PF. A primeira-dama protagonizou uma luta pelo poder com Mnangagwa, com ambos a disputarem a sucessão de Mugabe - aos 93 anos, o mais velho chefe do Estado em todo o mundo -, à frente dos destinos do Zimbabué há 37 anos.

Com Mugabe confinado à sua residência em Harare, a Casa do Telhado Azul, os militares garantiram ter como alvo os "criminosos" à sua volta. Mas ontem, mal foi conhecida a reunião da ZANU-PF, uma comitiva saiu da casa do presidente, por entre os apupos e vaias da multidão que para ali se encaminhara. Segundo a Reuters, o ainda chefe do Estado não seguia nos veículos e, disse a televisão estatal ZTV, terá encontro hoje com as chefias militares.

O sobrinho do presidente, Patrick Zhuwao, garantiu entretanto que o tio e a mulher estão "dispostos a morrer pelo que está certo", recusando demitir-se e legitimar o que descreveu como golpe de Estado. Na África do Sul, onde se encontra em parte incerta, Zhuwao explicou que Mugabe tem dormido pouco, mas que se encontra de boa saúde.

Nas ruas de Harare, o ambiente era de festa, com pessoas a cantar, dançar e a abraçar os soldados, aproveitando muitos para tirar selfies com os militares. Após décadas de repressão e crise económica, que resultou na hiperinflação e numa taxa de desemprego que se estima andar nos 90%, muitos zimbabueanos acreditam que só o afastamento de Mugabe pode melhorar a situação do país. "São lágrimas de alegria", afirmou à Reuters Frank Mutsindikwa, de 34 anos, enquanto segurava a bandeira do Zimbabué. Para ele, "estamos finalmente livres. Esperei por isto a vida toda". Para Sonia Kandemiri, "é um grande dia". Em declarações à AFP, esta zimbabueana recorda que "há 37 anos que não ganhamos nada por termos participado na guerra de libertação, enquanto Mugabe e a sua família vivem no luxo".

Por entre gritos de "bye, bye, Mugabe", podiam ver-se alguns brancos entre os manifestantes. Era o caso da corretora Eleanor Shepherd, que explicou também à AFP: "Estamos aqui para ver nascer um novo Zimbabué, para todos os habitantes deste país." A minoria branca, que chegou a representar cerca de 8% da população em 1975, hoje são cerca de 30 mil dos 16,2 milhões de zimbabueanos.

Visto por alguns como um herói nacionalista, símbolo da luta contra o jugo opressor do colonialismo, para muitos mais não passa de um ditador que não hesita em recorrer à violência para manter o poder e responsável pela destruição de uma economia que chegou a ser promissora. Documentos a que a Reuters teve acesso mostram que a mais do que provável saída de Mugabe deverá dar lugar a um governo interino liderado por Mnangagwa, combatente da guerra de libertação, velho aliado do presidente e conhecido como O Crocodilo. A primeira tarefa do novo líder será estabilizar a economia.

Na comunidade internacional, a saída de Mugabe foi recebida com alívio, com os EUA, há muito críticos do presidente, a saudarem uma "nova era". Já o presidente Ian Khama, do Botswana, lembrou que o líder zimbabueano não tem apoios na região e deve demitir-se.

Mas uma eventual queda de Mugabe deve provocar ondas de choque em África, onde líderes há muito no poder como Yoweri Museveni (presidente do Uganda desde 1986) e Joseph Kabila (chefe do Estado da República Democrática do Congo desde 2001, quando sucedeu ao pai) enfrentam cada vez mais pressão para se afastarem.

No caso de Mugabe, a economia terá sido um fator decisivo para a sua queda em desgraça. Duas décadas de má gestão começaram com a apreensão das fazendas dos brancos em 2000, gerando crescente frustração e ira. O banco central procurou resolver o problema imprimindo mais moeda, mas ao inundar o mercado só fez pior, provocando uma hiperinflação que atingiu o pico em 2008 - 231 mil milhões por cento. Pelo menos três milhões de zimbabueanos deixaram o país em busca de uma vida melhor, uma vez que após um breve período de estabilidade, entre 2009 e 2013, a economia voltou a colapsar.

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