Posta-restante

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Atravesso o portão e há uma alegria nos rostos. As vizinhas cumprimentam-se num festejo. Os homens convidam-se a matar o bicho. O carteiro detém-se com o gáudio de quem chega a um arraial.

É comovente a animação que uma mercearia pode trazer a um lugar. Sobretudo a um lugar assim, como este a que chamamos Dois Caminhos - um lugar que foi alegre e entristeceu mas não chegou a perder aquilo que o distinguia: uma intimidade, sempre as mesmas famílias, pouca clivagem social.

- Home", bebe um tainex com a gente - insiste o Vítor Lima. - Não me vais fazer essa ofensa!

Desta vez o tainex é uma mistura de Constantino e anis, explica-me. Noutros dias há-de ser outra coisa qualquer, pelo que o melhor é aproveitar hoje, que é docinho.

- Estou constipado - desculpo-me.

- Melhor ainda. Passa-te logo!

A Telma anda por ali, com a pequenina: três ou quatro meses dela, um cabelo vermelho como há anos não se via nas redondezas. Por detrás da balança Avery, o Américo vai somando funções.

No campo, uma mercearia vem a representar dezenas de papéis. É café, taberna e restaurante. É posto de polícia, é sucursal bancária, estádio de futebol. É consultório e mentideiro, sacristia e confessionário. É agência de empregos. Casa de banho pública. Despensa do império.

É edital e posta-restante, e só funciona se conseguir sê-lo a tudo, ao mesmo tempo ou à vez.

Por nós, já pedimos uma esplanada para a Primavera. Uma mesa interior, para fazer tertúlias. Já nos habituámos à hora a que chega o pão quente.

Devia erguer-se um monumento ao merceeiro. O país ainda não fez justiça aos seus merceeiros.

Estes acabam de nascer e parece que nunca saíram daqui. Entram e saem a horas, anotam as necessidades dos vizinhos, arredondam os preços ao cêntimo.

Há algo de inexpugnável em quem arredonda os preços ao cêntimo. Vão estar aí muitos anos.

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