Como era a vida dos portugueses que viveram na RDA

Por razões ideológicas ou escolha profissional, foram vários os portugueses que viveram do outro lado do muro, no coração da RDA. Um quotidiano diferente, com muitas peripécias, surpresas e alguns sustos.
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Os adeptos da Ostalgie (termo que designa o saudosismo da maneira de viver da RDA) acarinham a memória dos automóveis Trabant, do refrigerante Vita Cola por oposição à "água suja do imperialismo americano" e das muitas medalhas conquistadas nas Olimpíadas. Os detratores salientam, por sua vez, como na origem de muitas dessas vitórias estava o recurso sistemático a esteroides anabolizantes, o Estado policial controlado pela STASI, as prateleiras dos supermercados semivazias.

A noite em que tudo isso terminou, o da queda do Muro de Berlim, é recordado por Teresa Lourenço, professora de Português (que, nessa altura, vivia em Berlim Ocidental depois de ter passado dois anos no outro lado), como "de enorme júbilo, comparável apenas ao 25 de Abril". O que se seguiu é que nem sempre foi tão auspicioso como milhões de pessoas em todo o mundo terão sonhado quando, na noite de 9 de novembro de 1989 (faz neste sábado 30 anos), as picaretas se abateram sobre a Cortina de Ferro, que, durante quase três décadas, não só partira ao meio um país como separara dois sistemas políticos e económicos que mutuamente se abominavam.

Mas como era a vida quotidiana dos portugueses que ainda viveram na República Democrática da Alemanha? Arménio Fortunato, natural da Marinha Grande, chegou a Manschow (70 quilómetros a leste de Berlim) em 1983, começou a trabalhar numa cooperativa agrícola especialista na produção de cereais e leguminosas a céu aberto e de flores em estufa, que abastecia a capital e as empresas pecuárias da região com forragens. Um ano depois já estava à frente de uma brigada de 16 maquinistas de trator. Era uma vida dura, exigida pelos ritmos de produção, como Arménio (ainda hoje residente na Alemanha) recorda: "A minha mulher e eu trabalhávamos, em média, 40 horas por semana, número que facilmente era excedido em época de colheitas." Mas não se queixa das condições de vida nem estabelece comparações com o que se passava na outra Alemanha, a RFA, que não conheceu: "Vivíamos num apartamento num bloco pré-fabricado onde havia espaço para toda a família. Os nossos filhos frequentavam o infantário, a dois passos de casa, depois a escola primária, o liceu, tudo gratuito. A seguir foi a universidade, mas agora já estávamos nos novos tempos e nem tudo era assim tão acessível."

Teresa Lourenço foi para Berlim Leste em 1980, ensinar Português na Humboldt-Universität. Ali permaneceu até 1982, ali se casou (na Embaixada de Portugal) e admite algumas saudades. Porque, como tantas vezes acontece, as coisas não eram a branco e preto. "Recordo uma população que vivia sem luxos mas com algum conforto, já que havia muitos apoios no arrendamento de casa e as despesas de saúde e educação eram inteiramente custeadas pelo Estado, que, de facto, era omnipresente para o bem e para o mal."

Por mal, entenda-se, estava o controlo ideológico da vida de cada um pela polícia política do regime, a STASI, e o clima de medo que daí decorria. Ao trabalhar na universidade e também na rádio, Teresa considera que se movia num círculo que entre si falava com alguma liberdade, mas a tensão existia. Recordo-me do momento em que uma aluna me perguntou como era viver num país em que as pessoas tinham liberdade de viajar. Isto pode-nos parecer trivial, mas ela arriscou muito porque não me conhecia bem e não sabia se eu iria reportar às autoridades o desafio ao sistema que era aquela pergunta."

Teresa nunca foi diretamente incomodada, embora suspeite que, como a maioria dos estrangeiros a trabalhar na RDA, era vigiada: "Tive muito essa sensação quando, anos depois, estando a residir em Portugal, senti saudades e fui passar férias a Berlim Leste. Muitos dos meus antigos companheiros de trabalho ficaram perplexos. Não percebiam porquê e surgiram convites para jantar que, de inusitados, me pareceram formas de sondar melhor as minhas intenções." Enquanto viveu em Berlim Leste nunca testemunhou acontecimentos realmente dramáticos, mas não tardou a perceber que as pessoas que se acumulavam à porta de "algumas igrejas luteranas da cidade eram candidatas a uma vida no Ocidente", que os padres e as autoridades da RFA negociavam com o governo leste-alemão. O que viu muito e aprendeu a dar como adquirido foram os prodígios de imaginação de quem ia a Berlim Ocidental trocar marcos socialistas por marcos federais ou de avozinhas que iam aos supermercados mais bem fornecidos do outro lado e, no regresso a casa, viam as compotas inspecionadas pelos polícias da fronteira. Ou ainda longuíssima espera de quem se candidatava à compra de um automóvel Trabant produzido pelo Estado. "Havia quem pusesse os filhos na lista quando estes tinham 4 ou 5 anos porque já sabiam que o tempo de espera podia chegar a 15."

Bem menos divertido era o clima de favorecimento em prol dos membros do Partido único (o Partido Socialista Unificado ) no acesso a bens e a postos de trabalho. "Era muito visível", recorda Teresa. "Os meus alunos de Português (parte da licenciatura em Românicas) eram essencialmente candidatos a intérpretes nomeadamente em Angola e Moçambique, trabalho no terreno que fazia, aliás, parte do curso. À medida que o tempo passava, fui percebendo que os escolhidos eram sempre os mesmos. Por todo o lado se sentia muito essa distinção entre filhos e enteados."

E depois do adeus...

A viver na RFA na noite mágica de 9 de novembro de 1989, Teresa recorda uma imensa festa, o momento em que, como na canção de David Bowie, todos foram heróis por um dia. Mas o day after não foi fácil. "Voltei várias vezes à zona leste e, além da estranheza sentida na primeira vez em que passei sem controlo de fronteira, percebi que as pessoas estavam desiludidas. A sonhada reunificação parecia-se mais com uma anexação. Por outro lado, não creio que a antiga RFA estivesse preparada para receber a autêntica "invasão" de milhares e milhares de pessoas que imediatamente se mudaram para o lado ocidental."

Na memória de Arménio Fortunato estão muito presentes as dificuldades sentidas após a reunificação: "A nossa vida por estas bandas reflete em grande medida aquilo que mais de 90% da população ativa na antiga RDA foi repentinamente obrigada a enfrentar. Devido à falta de emprego no setor que acabara de abandonar, decidi enveredar pelo caminho dos empresários por conta própria. Eu sabia de antemão que nada de bom estava para vir." A 1 de julho de 1990, data em que a moeda oficial passou a ser o marco federal, iniciou atividade a Fortuna Werbung, mais tarde Fortunato Werbung, a empresa de que Arménio é titular. "A minha mulher, que na altura dirigia a secção de produção de legumes na cooperativa, ainda conseguiu ficar empregada lá dois anos após o fim da RDA e da transformação da cooperativa numa sociedade anónima. Mais de dois terços dos cerca de 400 trabalhadores já tinham ficado no desemprego." Quase três décadas depois, Arménio ainda encontra demasiadas assimetrias entre os "cinco novos Estados federados" e a Alemanha ocidental.

Quanto a garrafas de Vita Cola e automóveis Trabant, que fizeram parte da vida de todos os dias de Teresa e Arménio e de todos os habitantes, só é possível encontrá-los em sótãos, museus ou no eBay, onde, à imagem do que acontece com o chamado soviet chic, são muito procurados. A memória afetiva é um país estranho, com regras próprias que os historiadores não conseguem alcançar.

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