Portugueses preocupam-se "muito pouco" com a voz
Atriz há 20 anos, Odete Mosso reconhece a importância da voz e, por isso, tenta ter "todos os cuidados possíveis". Não fuma, não ingere bebidas muito quentes nem muito frias, aquece a voz antes dos espetáculos, usa técnicas para "não a estragar, como não gritar". "É um instrumento fundamental. Quanto mais a preservamos, melhor. Precisamos disso para a exponenciar, explorar", diz ao DN, na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados da Carvalhosa, no Porto, onde entre quinta-feira e sábado decorreu o Rastreio Nacional da Voz Artística. Já tinha feito um exame há três anos, "e estava tudo bem, mas é importante ver o estado das cordas vocais". Diz que "quem depende da voz, deve mesmo fazê-lo, mas, no fundo, toda a gente depende da voz no dia a dia".
A ideia de levar o rastreio às 18 capitais de distrito foi de Clara Capucho, cirurgiã otorrinolaringologista coordenadora da Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz, e conta com a promoção da Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA)."Não havia nenhum levantamento da saúde vocal dos portugueses", refere a especialista. Com a descentralização do rastreio, que já era feito em Lisboa, procura "perceber as patologias da população em geral e dos artistas, e compará-las; e promover a prevenção das doenças da voz e apanhar lesões malignas numa fase precoce para serem tratadas atempadamente".
Conhecida no meio artístico como "Dra. Voz", Clara Capucho diz que os portugueses ainda se preocupam "muito pouco" com a voz. "Os artistas estão mais consciencializados. Alguns fazem aquecimento e arrefecimento vocal, procuram o médico quando a voz não está bem. Na população em geral, quem se preocupa mais são os fumadores, porque sabem que o tabaco está associado ao cancro", refere.
À saída do exame, Odete Mosso, de 47 anos, conta ao DN que "não há nenhuma irregularidade" nas suas cordas vocais. Mas o mesmo não acontece com Daniela Mayan, de 49 anos, cantora há 23. "O exame detetou um pequeno edema e laringite de refluxo. Deve estar relacionado com o facto de ser fumadora e de ter estado três anos e meio sem cantar", adianta, acrescentando que a médica a aconselhou a uma consulta de especialidade. "Este rastreio é muito importante. O otorrino tinha-me pedido para fazer exames de centenas de euros. Aqui é gratuito".
Mário Brandão, de 41 anos, vocalista da banda Os Azeitonas, é um dos primeiros artistas a submeter-se ao rastreio nesta tarde de sexta-feira. Antes de passar ao exame, Clara Capucho começa por lhe fazer algumas perguntas relacionadas com a utilização que faz da voz e eventuais queixas. "Cantor. Pop-rock". Passa depois à videolaringoscopia indireta, um exame que lhe permite visualizar as cordas vocais do cantor. "Utiliza os músculos superiores da laringe mais do que devia e há um pouco de refluxo", alerta a cirurgiã otorrinolaringologista.
Depois de ceder a Miguel as imagens recolhidas no exame, a especialista refere algumas medidas a adotar: "Evitar comer até duas horas antes de se deitar; dormir com a cabeça elevada; e não deve pigarrear. Se sentir impressão, beba um gole de água. E deve beber um copo de água alcalina de manhã e à noite". No exercício da profissão, Clara Capucho diz que é essencial aquecer a voz - com uma escala a subir, por exemplo - e, no final, arrefecer a voz - com um bocejo com voz ou uma escala a descer.
Ao DN, Miguel Brandão conta que, "como nunca tinha feito um rastreio", achou importante participar. "Há doenças silenciosas. Podia ter alguma coisa e não saber", refere o artista. É normal aquecer a voz antes dos concertos, mas, confessa, não costuma arrefece-la. "É complicado, porque temos sempre que falar com pessoas quando o espetáculo acaba. Mas vou tentar".
Segundo Luís Sampaio, vice-presidente da GDA, foram feitos cerca de 900 exames desde que os rastreios começaram. Faltam as cidades de Aveiro, Viseu, Guarda, Coimbra e Viana do Castelo. "A voz é um aspeto central nos cuidados que gostamos de prestar. Trazer o rastreio às 18 capitais de distrito era uma vontade antiga, que estamos a concretizar", afirma.
Com a realização do exame, Clara Capucho sublinha que o objetivo é "encontrar todas as patologias da voz, desde as lesões morfológicas - nódulos, edemas, cancros - às patologias funcionais - como a má colocação da voz".
No decorrer dos rastreios, a especialista tem detetado "nódulos, refluxo laríngeo, mas também carcinomas das cordas vocais em fase inicial e lesões das mesmas, nomeadamente hemorragias, relacionadas com abuso vocal".
Entre os principais sinais de alerta de patologias vocais graves, destaca "rouquidão persistente, alterações da voz, falta de ar, sensação de corpo estranho, dificuldade em engolir, bem como dor nas cordas vocais, que tanto pode ser sinal de abuso vocal como de patologia grave".
Este rastreio resulta de uma parceria entre a GDA, o Ministério da Saúde e o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, que desde 2005 tem em funcionamento a Unidade de Voz do Hospital Egas Moniz.