Portugueses no Havai. "Nota-se uma comunidade quase no fim do seu trajeto"

O realizador e produtor Nelson Ponta-Garça acaba de publicar um livro sobre a presença portuguesa no Havai e diz que este pode ser o futuro de outras comunidades nos Estados Unidos.
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Quando os luso-americanos Nelson Ponta-Garça e Danny Abreu estavam a trabalhar num projeto sobre a presença portuguesa no Havai, tinham uma aposta contínua entre eles: quantas pessoas a quem perguntassem ao calhas teriam ascendência lusa? "Quase um em dois tinha uma costela portuguesa", conta ao DN Nelson Ponta-Garça. "Desde o cantor no restaurante à pessoa que conduzia o shuttle ao empregado de bar ou o dono do restaurante. Mais de metade tinham uma costela portuguesa", lembra. "Acho uma coisa fantástica."

O realizador e produtor passou anos a trabalhar neste projeto, que começou com um documentário e foi agora transformado em livro. Portuguese In Hawaii: The History of Generations documenta a longa história da emigração portuguesa para este arquipélago, que começou em 1878 oriunda sobretudo da Madeira e dos Açores.

"É uma história fascinante de emigração", descreve Nelson Ponta-Garça, que incluiu no livro mais de 50 histórias e entrevistas com intervenientes das quatro principais ilhas onde existem portugueses, Oahu, Maui, Kauai e Big Island.

"Mais do que aqueles que chegaram a presidentes de câmara de Maui ou Kauai ou empresários que dominam as suas áreas, eu destacaria as histórias de que as pessoas ainda se lembram da viagem dos seus pais, dos seus avós, bisavós", explica Ponta-Garça. "Viagens de quatro, cinco, seis meses de barco, em que metade das pessoas que vinham na viagem morriam e com crianças que nasciam a bordo."

O primeiro registo de um emigrante português nas ilhas data de 1814, segundo a Biblioteca do Congresso; chamava-se João (John) Elliott de Castro e trabalhou como médico do rei Kamehameha.

Mas a maioria dos portugueses que rumaram ao Havai foram trabalhar em plantações da cana do açúcar e chegaram entre 1878 e 1913, a um arquipélago que ainda era uma nação independente.

"Toda essa epopeia é uma das razões pelas quais eu queria fazer este livro, para deixar este registo e para que essas histórias não sejam esquecidas", salienta Ponta-Garça.

O risco de esquecimento é sempre real nas comunidades emigrantes, mas mais ainda numa região geograficamente isolada e em que as comunidades não mantiveram fortes laços à língua e ao país de origem.

"Uma das coisas que costumo dizer, sem alarmismo, é que se formos ao Havai vemos como vai ser a comunidade portuguesa da Califórnia daqui a trinta ou quarenta anos", sublinha Nelson Ponta-Garça. "Encontramos sobretudo pessoas em que os avós e na maioria bisavós eram de Portugal, pessoas que têm uma afinidade mas que nem todas têm a certeza de que zona vieram", conta. "Muitos já nem sabem bem de onde. Nunca mais regressaram."

Calcula-se que cerca de 10% da população do Havai, que totaliza 1,442 milhões de pessoas, tenha origem portuguesa. Já tinha havido no passado trabalhos debruçados à comunidade luso-havaiana, mas não recentemente. Segundo Ponta-Garça, não havia uma publicação atualizada com intervenientes locais neste formato há cem anos. E isso também espelha o enfraquecimento das ligações à identidade portuguesa.

"O que se vê de diferente é que é uma comunidade muito mais antiga e no fundo é um espelho daquilo que a comunidade da Califórnia e da Nova Inglaterra serão também", considera o autor. "Embora o Havai esteja muito mais isolado geograficamente e tenha outras condicionantes, o que aconteceu ali acho que vai acontecer nas outras comunidades. É quase viajar para o futuro."

Ponta-Garça tem conhecimento próximo destas realidades porque está há mais de dez anos a documentar as comunidades e criou a série Portuguese In. O trabalho começou com o documentário Portuguese in California, em 2014, seguido da publicação de um livro com o mesmo título. Sendo o estado com maior concentração de pessoas de origem portuguesa, quase 350 mil, a Califórnia tem comunidades que mantêm forte ligação à sua identidade lusa.

Seguiu-se Portuguese in New England, em 2016, com foco na indústria baleeira e dez gerações de portugueses nesta região leste dos Estados Unidos, onde a ligação identitária é forte.

Mas no Havai, a distância e a antiguidade da emigração enfraqueceram os laços.

"Nota-se uma comunidade quase no fim do seu trajeto", afirma o autor, ciente da importância que o seu trabalho pode ter. "Acho que tanto o documentário como o livro vieram dar aqui algum dinamismo. Fizemos eventos em várias ilhas e tentámos mobilizar e ir ao encontro das organizações mais interessantes."

Os eventos de apresentação do livro em várias ilhas contaram sempre com a presença do cônsul-geral de Portugal em São Francisco, Pedro Pinto, que tem feito um trabalho constante de dinamização comunitária nos Estados Unidos.

Em Oahu, a apresentação aconteceu na câmara municipal da cidade, que tem uma história longa com mayors e vereadores portugueses, organizada pelo cônsul honorário Tyler dos Santos-Tam, que também tem ascendência portuguesa.

Nas outras ilhas, os eventos aconteceram em câmaras de comércio portuguesas, centros históricos, cafés e locais físicos com ligação à gastronomia e ao ukulele, o instrumento musical baseado no cavaquinho.

A tour com a presença do cônsul "acabou por ter um impacto de dinamizar a comunidade, motivá-la a manter-se ligada e a despertá-los para Portugal e para as suas raízes", considera Ponta-Garça. Isso foi importante porque "está tudo adormecido", diz. "Mesmo as organizações comunitárias com lideranças de pessoas idosas que deram um contributo grande mas já estão cansadas e algumas até desanimadas com a vida de voluntariado e o que isso acarreta."

Nos restaurantes havaianos do McDonald"s, há um item exclusivo no menu que alude à influência lusa na cozinha do arquipélago: salsichas portuguesas. Noutros sítios encontra-se "pãó dôcé" e malassadas, commumente escritas como "malasadas." A pastelaria Leonard"s Bakery, em Honululu, tem sempre filas à porta com clientes que querem apanhar as malassadas, descritas como "doughnuts portugueses." Há políticos locais com sobrenomes como Cravalho, Victorino e Tavares.

Em Oahu, Nelson Ponta-Garça diz ter testemunhado "a mais curta e rápida procissão do Espírito Santo em todo o mundo", perto da famosa praia de Waikiki. As procissões do Espírito Santo são uma marca indelével da comunidade nos Estados Unidos, atraindo milhares de luso-americanos numa demonstração que é tanto de fé como de portugalidade.

Há ruas com nomes familiares, como "Machado", "Lusitana" e "Madeira", e quem sobe chega à zona de Punchbowl, onde além de haver uma grande comunidade portuguesa existe uma capela, a Punchbowl Holy Spirit. É o único sítio físico da ilha de Oahu onde há um espaço português e onde se celebra a Festa, a que eles chamam de "Dominga."

Na Big Island, que já teve 50% da população com origem portuguesa, é onde se encontra mais indícios da emigração lusa. O centro histórico retrata a história da cana do açúcar, onde os portugueses foram relevantes, e a câmara de comércio tem um projeto para fazer um dos maiores centros comunitários portugueses na América, que englobe tudo desde música, dança e língua portuguesa. Este aspeto cultural é importante, reflete Ponta-Garça. "Os havaianos estão muito cientes de o ukulele ser um instrumento português, trazido por portugueses que ensinaram o rei a tocar."

A diluição das comunidades portuguesas no Havai pode ser contraposta com sinais de esperança e de aproximação, mais visíveis nos últimos anos. O documentário e o livro ajudaram a mobilizar as associações e há um atrativo renovado em Portugal, cujo perfil nos Estados Unidos atingiu um pico sem precedentes.

"Estão a acontecer muitas coisas positivas e está a haver mais alguma ligação", sublinha o autor.

"Conheço muitas pessoas que nunca tinham ido a Portugal ou tinham ido há muitos anos e que vieram entretanto", continua. "Muitos que falavam em vir nas entrevistas estão a tratar disso este ano ou no próximo."

Não só há mais visitas e viagens planeadas como um projeto de parcerias: está a ser trabalhada a criação de várias cidades-irmãs entre o Havai e Madeira e Açores. "Fala-se também de uma ligação entre a Nazaré e o Havai pela questão das duas maiores ondas."

Este tipo de iniciativas privadas é essencial porque raramente há eventos e ligações oficiais que cruzam com o Havai. Quando esteve na Califórnia em setembro de 2022, o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa recebeu um ukulele do cônsul honorário Tyler dos Santos-Tam e manifestou o desejo de visitar uma comunidade que é "antiquíssima, antiquíssima, das mais antigas e mais resistentes que vive lá isolada, ainda mais no fim do mundo."

Mas justificar a deslocação é complicado, admitiu o presidente, principalmente numa altura de contração económica.

Nelson Ponta-Garça aludiu a isso mesmo. "Politicamente é difícil a um secretário de Estado, a um presidente do governo regional, um ministro ou até Presidente da República justificar uma ida ao Havai", afirma. "Há a perspetiva da população em geral que é um gasto do dinheiro dos contribuintes", continua, para ir a um lugar paradisíaco com praias de postal. "Torna-se difícil justificar essas idas e o que acontece é que raramente há uma presença quer política quer de intercâmbios", frisa o autor. "Existem poucos ou nenhuns." É por isso que a tour do livro com o cônsul Pedro Pinto e os acordos para as cidades-irmãs assumem tanta importância neste momento.

Entretanto, o documentário está disponível para visualização no site PortugueseIn.com e o livro pode ser comprado por quem esteja nos Estados Unidos. Está também disponível nalgumas bibliotecas de instituições em Portugal, como a da Presidência da República, e foi entregue a secretários de Estado e ministros. "Fica um registo desta comunidade", frisa Ponta-Garça. Para memória das gerações futuras, mesmo que não voltem a aprender português.

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