Portugueses no Cazaquistão. Violência foi como "um canário na mina" num "país de futuro"

António Henriques vive há 13 anos na antiga capital cazaque e Tiago Santos há pouco mais de ano e meio. Contaram ao DN como ninguém previa os eventos de início de janeiro, que devem servir como aviso, e das oportunidades que há neste país da Ásia Central.
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O restaurante podia ser em Lisboa não fosse o facto de haver um bengaleiro para deixar os pesados casacos que na rua protegem das temperaturas negativas ou de o menu, onde os pratos com carne de cavalo não são uma comida exótica mas misturam-se com os pratos de pasta, estar em cirílico. No Svet, que significa "luz" e fica no centro de Almaty, até há vinho português. Esta cidade cosmopolita é a casa de António Henriques há 13 anos.

Nascido no Funchal fez uma pausa nos estudos de Economia em Coimbra para ser delegado da maior organização de estudantes do mundo (a AIESEC) e quando esse projeto acabou optou por ficar e trabalhar como consultor, ajudando hoje as empresas portuguesas que querem tentar a sorte no Cazaquistão. "Um país de futuro", conta ao DN, apesar dos eventos de janeiro que o puseram nas bocas do mundo.

"O que se passou em janeiro foi traumático, porque não se esperava. Almaty e o Cazaquistão são muito estáveis, por definição, por hábito. Quando esta situação se gerou, ninguém verdadeiramente a podia prever. Criou algum pânico, teve a coincidência de acontecer em dias de nevoeiro cerrado, dia e noite, o que ainda aumentou a incerteza", conta António durante um jantar.

Os protestos pacíficos no oeste do país por causa do aumento do preço do Gás de Petróleo Liquefeito estenderam-se a 11 regiões do país e tornaram-se violentos, com mais de 200 mortos ao longo de vários dias. As autoridades, que ainda não publicaram os resultados da investigação ao que se passou, alegam que os protestos foram aproveitados por grupos criminosos e até terroristas que tinham como objetivo desestabilizar o governo e fazer cair o presidente Kassym-Jomart Tokayev, que prometeu entretanto várias reformas económicas e políticas no país.

"Quando a situação, ao fim de três ou quatro dias, finalmente estabilizou, o sentimento foi que o governo, o sistema, o presidente, continuam a ter crédito social por parte da maioria dos cazaques para exercer o seu poder e pôr em ação as reformas já prometidas, que se configuram como uma oportunidade para o país manter as boas taxas de crescimento [mais de 4% em 2021] e a estabilidade", referiu António.

Casado com uma cazaque e pai de dois filhos que têm passaporte do Cazaquistão, contou que a sua esperança é que "a situação infeliz, em que muita gente perdeu a vida e perdeu os negócios, tenha sido uma espécie de canário na mina". Um aviso que "ajude o país a libertar-se de certos obstáculos que, ao longo de 30 anos do mesmo estilo de governo, se foram formando". Nada do que aconteceu, explicou, "retira nem um pouco ao facto de o Cazaquistão ser um país de futuro, de ser um povo que merece a confiança", mesmo sendo um país numa região exposta a riscos geopolíticos e a status quo difíceis de combater.

No final de fevereiro, quando o DN esteve em Almaty, quis o destino que um outro português que vive na cidade há pouco mais de ano e meio, Tiago Santos, estivesse em viagem no oeste do país. O diretor-geral da Danone para o Cazaquistão, de 47 anos, contou por telefone o que viveu no início da janeiro. "Estive com a minha família em Portugal no Natal e voltámos antes do fim de ano a Almaty. No dia em que tudo começou, tínhamos ido almoçar ao centro e havia algumas estradas à volta do palácio presidencial cortadas, mas os polícias disseram-nos que havia uma visita oficial", explicou. Mas não era verdade. "Nessa noite começámos a ver os vídeos dos protestos, ainda tudo mais ou menos normal. Depois começaram a cortar a Internet e no dia seguinte soubemos que tinham ocupado o aeroporto e que as coisas estavam mais complicadas. Foram três ou quatro dias de muita incerteza."

Tiago vive nas montanhas, na parte alta da cidade, longe da confusão no centro. "Tivemos que ficar fechados em casa, nem podíamos sair para ir às compras porque os bancos não funcionavam, por não haver internet. Também não havia telefone. O corte das comunicações foi o mais complicado", indicou. "O nível de violência que se assistiu em Almaty surpreendeu toda a gente. Ninguém nunca esperou que pudesse acontecer", reiterou, explicando que na sua empresa o facto de não haver internet durante vários dias causou impacto nas operações. Mas com o regresso da calma, diz que não sente haver problemas com o investimento e a aposta do país. "Estamos aqui há muitos anos e vamos continuar a estar", referiu.

Este português, que em 1999 optou por trabalhar fora de Portugal, está habituado aos cenários complicados. A sua mulher é ucraniana e em 2014 estavam ambos nesse país, durante a revolução que levou à queda do presidente Viktor Ianukovitch. Além disso, também é responsável pela Danone na Bielorrússia, tendo seguido de perto os acontecimentos de há dois anos contra o presidente Alexander Lukashenko. "Na Ucrânia e na Bielorrússia vi muita gente contra o governo e a favor de uma mudança. Eu aqui ouvi pessoas falar da corrupção e de que há muita coisa que podia mudar, mas não ouvi nunca alguém a dizer querer uma mudança", referiu. Daí a surpresa com o que aconteceu. "Não vejo o nível de contestação entre as pessoas, jovens, urbanas, que via noutros países."

A situação para Tiago Santos foi desta vez mais "angustiante" porque agora já tem filhos, um rapaz de quatro anos e uma menina de seis meses, já nascida no Cazaquistão. "Estar sem internet e sem telefone é muito complicado nos dias que correm. Sem aeroporto, sem comboio, sem poder sair da cidade. Esse foi o grande problema". Mas da mesma maneira que a violência começou sem aviso, "quando acabou o estado de sítio, a vida voltou completamente ao normal". Agora a preocupação é com a Ucrânia, onde a família da mulher ainda está.

susana.f.salvador@dn.pt

O DN viajou a convite do governo do Cazaquistão

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