"Tememos uma explosão social"
"Tenho a impressão que a situação é ainda pior do que os jornais estão a dizer e do que as pessoas acham. Não há produtos básicos, não há medicamentos, há insegurança, os cortes de luz são terríveis..." Maria de Lurdes Almeida vive há mais de 50 anos na Venezuela, tendo deixado Portugal ainda pequena, e traça um retrato crítico do que se passa no outro lado do Atlântico. Apesar do otimismo - "algum dia isto virão tempos melhores" - a conselheira das comunidades portuguesas em Caracas admite ter medo do futuro. "Tememos uma explosão social, uma explosão militar. Neste cenário tudo pode acontecer."
O cenário de que fala é o início do processo, com a entrega de 1,8 milhões de assinaturas por parte da oposição, para um referendo revogatório do mandato do presidente Nicolás Maduro. Este, que perdeu a maioria na Assembleia Nacional, já apelou à revolta caso os opositores da Mesa de Unidade Democrática (MUD), consigam derrubá-lo. Maduro fala numa tentativa de golpe contra si e contra o legado socialista do seu antecessor, o falecido presidente Hugo Chávez.
"O governo perdeu as eleições e aceitou. Falava-se que haveria violência e não houve", recorda ao DN o presidente honorário da Câmara Venezuelana Portuguesa de Comércio e Turismo, José Luis Ferreira. "O processo é, neste momento, democrático, o Conselho Nacional Eleitoral aceitou as assinaturas, não houve nenhum tipo de violência. Penso, para bem de todos, que a situação continuará dessa maneira", acrescentou, traçando um cenário menos negro que a conselheira das comunidades.
"Obviamente que todos estamos preocupados com a situação, porque não sabemos se este processo vai dar resultado ou não. Mas o que não se pode discutir é que, seja o mesmo governo ou outro governo, é que o nosso país, a Venezuela, lamentavelmente tocou no fundo e agora para recuperar vai ser difícil", lamenta Maria de Lurdes. José Luis Ferreira diz que, infelizmente, a questão da escassez de produtos básicos já se tornou quase normal: "Estamos sempre na expectativa que as coisas melhorem."
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O normal, explica a conselheira, é só poder comprar produtos uma vez por semana, consoante o número do cartão de cidadão. "As filas são de seis e oito horas e estamos dependentes do que se vende naquele dia. Podemos querer café, mas não há café, queremos massa, mas não há massa... É o que calha, o que aparece. Claro, muitos sujeitam-se a comprar fora dos supermercados [mercado negro] e a pagar preços exorbitantes", afirmou. A inflação em 2015 foi de 180%.
Alerta ao governo
Atualmente de passagem por Portugal, onde assistiu à reunião plenária do Conselho das Comunidades Portuguesas, Maria de Lurdes fez questão de denunciar a situação: "Todas as comunidades sofrem por igual na Venezuela, mas a comunidade portuguesa dedica-se tanto ao comércio que é uma das mais afetadas", explicou. José Luis Ferreira, que conhece bem o negócio das importações, diz que da parte dos empresários" há preocupação em geral", explicando que não há divisas para importação de forma livre. "Há prioridades do governo que temos que respeitar", referiu.
Maria de Lurdes aproveitou também para pedir ajuda. "Disse ao secretário de Estado das Comunidades Portuguesas [José Luís Carneiro] que, por favor, olhasse para a Venezuela, porque todas as comunidades são importantes, mas a que deve ter prioridade é a que está a passar esta terrível situação. Tenho entendido que ele vai lá em breve, sabemos que não vai solucionar o problema, mas ao menos dá uma palavra de alento à comunidade e mostra que o nosso governo está atento ao que estamos a passar", contou. "A comunidade internacional pode tentar fechar os olhos, mas a situação é crítica", indicou a conselheira.
"A situação social, económica e política que se vive na Venezuela é acompanhada com toda a atenção, porquanto temos na Venezuela uma das maiores comunidades portuguesas no mundo", afirmou José Luís Carneiro à Lusa na semana passada, à margem da reunião plenária que reuniu os conselheiros portugueses. Há cerca de 170 mil portugueses inscritos nos consulados do país - uma fração dos estimados 400 mil que aí vivem e 1,3 milhões de lusodescendentes. O secretário de Estado indicou ainda nessa ocasião que pretende deslocar-se à Venezuela "tão breve quanto possível".
"Estamos a tentar sobreviver, porque já não vivemos. Mas, como sempre digo, parar é morrer e a esperança é sempre a última que se perde." Apesar do cenário negro que traça, Maria de Lurdes não pensa deixar a Venezuela. Quanto aos filhos ou aos netos, a situação é diferente. "Os filhos são maiores de idade, têm poder de decisão. Mas a juventude está a tratar de procurar outros destinos para um futuro melhor. Lamentavelmente, neste momento, não veem esse futuro na Venezuela", explicou.