Portugal quer mandar no Brasil?
Quando no jantar oficial de receção a Lula da Silva, sábado passado, o Presidente da República Portuguesa citou os primeiros versos da canção Fado Tropical para ilustrar a irmandade entre Brasil e Portugal, correu um risco: a canção de Ruy Guerra e Chico Buarque pertence a uma peça de 1973 chamada Calabar - O Elogio da Traição que, entre muitas outras coisas, aborda a violência do colonialismo português.
A peça seria proibida, à beira da estreia, pela ditadura militar brasileira (a imprensa nem o nome dela podia escrever para noticiar o cancelamento do espetáculo, previamente anunciado) e incluía, quase no início, este Fado Tropical, que é cantado pela personagem que encarna o governador português de Pernambuco em 1634: Mathias de Albuquerque.
Trata-se do conde de Alegrete, que comandou duas guerras contra invasões holandesas. No enredo ele persegue um líder mulato, Domingos Fernandes Calabar, que se passou para o lado dos holandeses e, simbolicamente, canta e diz os versos do Fado Tropical enquanto se alivia na latrina de um acampamento militar.
A letra expressa a visão brutal do colonizador sobre a colónia, da suposta necessidade da tortura, da bondade da repressão, da naturalidade da violação, da rotina do exercício sistemático da crueldade.
Para quem colonizava, tudo isso era necessário, mesmo se lamentável: a personagem relativiza a sua própria impiedade ao dizer que quando comete essas atrocidades o seu "coração fecha os olhos e sinceramente chora".
Simultaneamente, o texto da canção põe na boca de Mathias de Albuquerque, esse herói português nascido no Brasil, esse algoz do poder civilizacional cristão e ocidental na América do Sul, a saudade da pátria-mãe, a louca ambição de ela vir a transformar-se num verdadeiro império colonial e exprime um insensível, porém romântico, apetite global: "Esta terra ainda vai tornar-se um imenso Portugal", diz o refrão.
A letra faz imensas referências cruzadas a características de Portugal e do Brasil, com o governador português de Pernambuco a exprimir o seu amor pelas duas terras, pelas pessoas dos dois territórios, pelas suas paisagens, pelos seus costumes, pelos seus cheiros, pelas suas cores, pelas suas falas, misturando numa única identidade nacional características distintas, contrastantes e, até, antagónicas - Mathias de Albuquerque parece querer encontrar, na semente da opressão, a raiz de uma árvore de fraternidade, cujos ramos cheguem aos dois lados do Atlântico.
A parte de Fado Tropical citada por Marcelo Rebelo de Sousa, no jantar que ofereceu a Lula da Silva, estava, aparentemente, isenta dos pecados da colonização. Pelo menos é o que parece à primeira vista se a descontextualizarmos do resto da canção e da peça que a originou, mas não deixa de ser uma escolha bizarra tentar elogiar o futuro da relação Portugal-Brasil com base neste texto genial.
No discurso de ontem, na cerimónia oficial de celebração do 25 de Abril, o Presidente falou do Portugal colonizador e disse: "Não é apenas pedir desculpa - devida, sem dúvida - por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é, às vezes, o que há de mais fácil - pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado."
Por mim, subscrevo, mas...
... depois do que se passou com as ações de deputados e dirigentes partidários, representantes da direita no Parlamento português, na receção ao presidente da República Federativa do Brasil, depois de lhe tentarem minar o uso da palavra, depois de tentarem condicionar o seu posicionamento sobre política internacional, depois de tentarem descredibilizar as decisões da Justiça do seu país, depois de tentarem menorizar o valor político da sua visita a Portugal, o que fica para o futuro?
Fica o rasto de uma parte do poder político de um país ex-colonizador ter procurado impor ao poder político do país que colonizou o direito de definir o que está certo ou está errado, esquecendo que, por ter sido a potência colonial até há dois séculos, tem muito pouca moral para o fazer, mesmo se possuísse, quiçá, alguma razão.
Assim, o olhar sobre o período colonial que Marcelo propôs não é, simplesmente, viável, com estas atitudes, "o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado" não acontecerá.
Porquê? Porque André Ventura, Rui Rocha e, até, Luís Montenegro, bem como outros protagonista políticos como eles, pensam como o sanguinário Mathias de Albuquerque da canção Fado Tropical: encontram na semente da opressão a raiz futura de uma árvore de fraternidade entre Portugal e o Brasil.
Jornalista