Célia David vive a correr. É atriz e encenadora. Celebrizou-se em novelas como Chuva na Areia (1985) e Palavras Cruzadas (1987), mas a sua cabeça não tem descanso desde que assumiu a direção do Teatro de Animação de Setúbal (TAS). "Isto nunca para, é preciso ter sempre novas ideias, novos projetos", diz. Há que pensar nas peças para levar à cena no Teatro de Bolso, mas exibe no currículo recente uma incursão nas escolas do país, onde tem procurado levar o teatro e cativar o gosto dos jovens. Do básico ao secundário. Nem sempre é fácil deslocar a logística, mas com arte e engenho a coisa tem-se feito.."É por isto que digo que a criatividade é que devia ser apoiada. A programação é fácil, porque basta escolher o que já foi criado antes. Criar é que dá um trabalhão", justifica, assumindo, quase sem surpresa, a sua ideia para o país: "Portugal precisa de dar 1% do Orçamento do Estado para a cultura", sublinha. Justifica que "até é uma coisa simples, além de não haver nenhum país civilizado que tenha menos do que isso no seu orçamento para a respetiva cultura"..Célia David convida mesmo quem governa o país a espreitar a importância da aposta na cultura numa altura em que tanto se investe no turismo. Diz que tem tudo a ver. "O turismo é o setor onde mais se investe hoje, porque é aquele que pode tornar-nos mais competitivos a nível da Europa e lançar o país para o exterior. Agora, se for um turismo sem cultura onde é que fica a nossa identidade?", questiona, resumindo que "o turismo não pode ser só paisagem"..A atriz, que nasceu em Santiago do Cacém, em 1965, conta hoje com 35 anos de carreira. Está apenas dedicada ao mesmo teatro que tem procurado levar a várias escolas do país numa aposta arrojada de promoção desta atividade artística. Célia David preferia que fossem os jovens a deslocarem-se às salas de teatro "para se habituarem, desde cedo, a irem ao sítio onde os espetáculos têm lugar", explica. Mas a dificuldade de transporte levou o TAS a arregaçar as mangas e a fazer o caminho inverso.."Não é a mesma coisa, mas esta alternativa é melhor do que nada", admite resignada, depois de no último ano letivo ter percorrido o país com peças de Gil Vicente, como o Auto da Barca do Inferno e o Auto da Índia, além das Fábulas de Bocage. Umas que o famoso poeta de Setúbal traduziu e outras que ele próprio escreveu..O ano letivo que bate à porta também já está na mente de Célia para que o público que um dia irá sentar-se na plateia possa começar a ser formado desde a infância. "São pessoas que vão ter mais conhecimento e saberão ser mais críticos e exigentes", diz, assumindo que a colheita já começou a dar frutos ao TAS. "Até já temos exemplos em que são as crianças que levam os pais ao teatro", revela, insistindo que a luta é constante pela sobrevivência desta manifestação artística..Aliás, o "seu" TAS é a prova cabal disso, tais foram as dificuldades que enfrentou há poucos anos em pleno Teatro de Bolso - o nome do equipamento cultural que lhe está cedido. Hoje dá sinais de respirar melhor, comparando com há quatro e cinco anos, em plena vigência da troika e quase em sintonia com a tendência da economia portuguesa..Mas Célia David prefere travar a fundo quando se pergunta se tem confiança num futuro risonho para a sua "casa". "Tenho medo de que estes dias melhores sejam só uma aparência, porque nós nunca sabemos a verdade toda em relação à economia do país. Repare que basta haver uma boa notícia para ficarmos logo otimistas", ressalva..E justifica-se lançando um olhar de desconfiança sobre a classe política à portuguesa. "Nós sabemos o que os políticos nos dizem, mas também sabemos que a política partidária faz a campanha pelo seu partido. Cada vez que muda um governo dizem-nos uma coisa diferente e nunca é a verdade toda", assegura, lamentando que Portugal tenha tendência para viver de "aparências", mas depois se revele um país um pouco à margem da Europa, onde, sustenta a atriz, continua a mostrar "alguma timidez e falta de confiança"..Aqui recorre a Eça de Queiroz, lembrando como o escritor já falava do provincianismo por cá instalado no século XIX. "É uma questão de mentalidade e insegurança por acreditarmos pouco em nós. Somos um país extraordinário, mas parece que temos medo e algum sentimento de inferioridade", diz, sem perder de vista o facto de Portugal "ter estado muito tempo isolado nessa coisa do orgulhosamente sós. Isso isolou-nos do resto do mundo e deixou-nos mais escuros. Depois temos tendência para a depressão e nostalgia", conclui..É também para combater este estado de espírito que Célia David não hesita em defender a presença de Portugal na União Europeia. "Se não tivermos alguém a puxar por nós é que nos afundamos mesmo", alega, para reconhecer em seguida que a União Europeia tem "vantagens e desvantagens".