Portugal positivo

Não há ciência que explique nem sociologia que ajude a entender, mas há milhares de páginas escritas e seguidores da ideia de que o pensamento positivo sobre uma determinada realidade altera essa realidade. De forma intuitiva e nada científica, simplesmente por não aguentarem mais tanto miserabilismo e maledicência, muitos portugueses usam a web para pensar positivamente acerca do país e da realidade que, dizem, não é tão má como a pintam! E, quem sabe, não a alteram, só por acreditarem?!
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Fartinhos de tanto choradinho, indignados com o olhar negro sobre o país que lhes é dado nas primeiras páginas dos jornais ou nas aberturas dos espaços de informação na televisão, há portugueses «anónimos», empresários e instituições que decidiram escolher o lado B do país e transformá-lo no rosto verdadeiro deste rectângulo à beira-mar plantado. Uma pesquisa na internet - o território agora privilegiado para lançar movimentos e novas correntes - descobre entradas pelos motes Positivo, Boas Notícias, à Frente, Primeiro... tudo associado a Portugal, uma moeda hoje em desvalorização no contexto dos desígnios macro na Europa. Será?

No Portugal na Frente, portugalnafrente@groups.facebook.com, grupo aberto criado no Facebook por três amigos na casa dos 60, há todos os dias boas notícias postadas pelos 233 «amigos» angariados em pouco menos de um mês. «Sempre detestei ouvir dizer coisas do género "ah, somos um país do terceiro mundo" a respeito do que corre menos bem em Portugal, e sobretudo dito por gente que não faz a mínima ideia do que é o terceiro mundo ou sequer o mundo», conta Gabriela Cabral, licenciada em Química e desempregada aos 62 anos, ingredientes que dificilmente se compaginam com optimismo.

Gabi é optimista. E muito crítica do tacanhismo a que, vinda de Angola, não estava habituada e encontrou de forma muito evidente em Portugal, e que acusa os jornais e as televisões de fomentarem. «É impressionante, mas parece que só o futebol ou o desporto são capazes de convencer os jornais a colocarem notícias boas nas primeiras páginas. E elas existem, basta ir à internet e a gente consegue vê-las, mas nos jornais e nas TV estão lá no fim, escondidas ou manipuladas», lamenta. «De tal forma é ridículo, que se houver um acidente e não apanharem imagens dos mortos, vão filmar o asfalto com sangue para podermos ver como é tudo horrível... Não há pachorra!!», atira, firme e sem papas na língua esta mulher que não quer «protagonismos» nem fotos, e nem queria sequer o seu nome no jornal.

O "Boas Notícias"

Patrícia Maia, editora do jornal online Boas Notícias, não vai tão longe. É mais jovem, lida muito bem com a tecnologia desde os tempos em que tratou do site da TSF online, e hoje está à frente de um projecto que se encontra nos antípodas da leitura habitualmente disponível aos portugueses. «A ideia foi contrariar a tendência generalizada na comunicação social e dar prioridade às boas notícias. Em Março de 2010, por iniciativa da The Agency, arrancámos com este portal em que juntamos o que anda disperso por várias fontes de notícias, aprofundamos o que está meio escondido e tratado pela rama nos outros veículos e damos o tom geral a um site que está a ter muito boa aceitação», descreve, convalescente de uma fractura num pé e nem por isso indisponível ou amarga.

O Boas Notícias tem mais de 26 mil seguidores no Facebook (se fossem compradores de um jornal colocariam o título entre os mais vendidos em Portugal) e com um ano de bons serviços e grande visibilidade, está na hora de começar a dar dinheiro. «O passo que estamos a concluir é a apresentação dos nossos números aos parceiros potenciais para que o projecto comece a render não apenas visibilidade e credibilidade mas também seja negócio», explica Patrícia Maia, lembrando que o site tem participação no programa da RTP Sociedade Civil, regista mais de 250 mil pageviews por mês e é lido e consultado em 11 países, maioritariamente em Portugal, no Brasil e em Inglaterra.

Digamos que é sobretudo pela internet que o Portugal brilhante, que faz e faz bem pode ser apreendido, por sobre o ruído das agências de rating e da crise do euro, das intervenções da troika e das desgraças à guitarrada. A nível empresarial e institucional, alguns ventos de mudança fazem sentir-se. A AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal) mantém há vários anos uma espécie de lista das excelências, uma lista que começou com 49 empresas reunidas sob o lema «Portugal Faz Bem» e vai hoje em 87 marcas. Curiosamente, apenas três ligadas ao turismo constam do índice que é fortemente tomado pelas marcas associadas a Alimentação e Bebidas - dos vinhos Pera Manca aos sumos e processados da Compal - pelos produtos para a Casa - da Ach Brito, que encanta Oprah Winfrey, à cutelaria da Cutipol - e à Moda, que inclui os sapatos e sandálias da Fly London e os algodões NaturaPura. Players da distribuição como o Pingo Doce, da Jerónimo Martins, ou Continente, da Sonae, alavancam o consumo de frutas, legumes e outras vitualhas, à boleia (?) de um conceito difundido pelo presidente da República, advogando o retorno ao campo e ao consumo do que é português. Parte de uma estratégia para virar o bico ao prego da desgraça?

Opiniões que humilham

«Não conheço estudos sobre o efeito do pensamento positivo no comportamento colectivo de um país, mas acho esta reacção de contrariar o tom geral de descrença muito normal», diz Boaventura Sousa Santos, professor catedrático, homem de esquerda e autor do Ensaio contra a Autoflagelação (Almedina) recentemente lançado e também com página no Facebook. «Nós não sabemos se os momentos difíceis chegaram de verdade, atenção, e por isso vejo estes movimentos um pouco como uma fuga para a frente. Mas é certo que o miserabilismo paralisa e faz-nos acreditar que não há nada a fazer. Mas há», diz, deplorando o «bota-abaixismo» vigente entre alguns fazedores de opinião. «Se começarmos a pensar pela cabeça dos comentadores de serviço, quase todos conservadores, somos levados a pensar que em Portugal nada deu certo. Mas o que é isso? O que é que nos andam a vender certas pessoas, que nem deviam ter espaço público aberto para humilharem o povo português? O que pessoas como Medina Carreira, Vasco Pulido Valente e Miguel Sousa Tavares escrevem ofende quem lê», clama, totalmente esperançado nos jovens que não se conformam mas fazem mais do que reclamar: «Claro que a actual situação não é só culpa de um contexto global, mas há saídas. E o que temos é de encontrar as saídas e o lado positivo da crise, deixando de dar a ideia de que não há alternativas, porque há.»

Tal como o professor de Coimbra atribui aos jovens a capacidade eterna de se revoltarem e encontrarem novas soluções, Gabriela Cabral deposita na mesma juventude um grande capital de «esperança na mudança, porque viajam, conhecem e estão mais abertos e atentos», e Patrícia Maia, com apenas 35 anos, fala de «boas práticas empresarias e ideias revolucionárias e empreendedoras», como as grandes fontes de inspiração do seu jornal.

No «Portugal na frente» (portugalnafrente@groups.facebook.com) cada novo «amigo» é avisado das intenções e do estatuto «editorial»: «Este grupo destina-se a divulgar apenas o que Portugal produz de melhor! Más notícias aqui não vingam...», avisam os criadores, explicando: «Um país que não valoriza o que tem de bom é incapaz de se empenhar seriamente num processo de reconstrução social e económica. E valorizar pessoas, empresas ou factos passa por os tornar públicos, fazer a passar a mensagem, dá-los a conhecer aos outros. Um país que não se aprecia muito dificilmente pode ser admirado por terceiros. Dizer bem de coisas que existem e de quem as fez é a melhor maneira de dar a volta à crise. Aprender com quem faz bem não é apenas um afago para a auto-estima. É promover a mudança a partir do exemplo.»

Jornalismo positivo

Exemplos de bem dizer e bem fazer não faltam: «Berlengas e Santana classificados pela UNESCO», «Évora é epicentro de inovação», «Prémio da IBM pela primeira vez para uma mulher», são alguns, todos partilhados através de títulos generalistas ou especializados, mas que retirados da sombra de manchetes bombásticas, e negativas, ganham outro brilho.

«Eu ando muito por Portugal e sei que há o país que passa na TV e o país do fim da rua, como diz a TSF, e eles não são o mesmo», diz Ricardo Santos, criador do blogue Jornalismo Positivo, um amor entre trabalhos como freelancer para várias publicações. Ricardo zangou-se com o jornalismo vigente quando lhe marcaram um serviço daqueles que nenhum jornalista gosta, mas que supostamente interessa a muitos leitores: «Fazer reportagem com a casa dos famosos no Algarve.» Arrepiado, contrariado, fez! Mas combateu o desencanto preparando a saída do sistema e hoje só conseguiu confirmar a ideia de que há muito mais país além do que se revê nas linhas e horas de emissão à porta de um ídolo ou se emociona com traições de faca e alguidar. «Atenção que há muitos Cristianos Ronaldos, muitas Merches Romero e muitos Manuel Luís Goucha, mas não há só isso e essa é que é a questão. Os jornais e televisões estão só a dar os podres sem aprofundar nada. Mata-se o Angélico logo à porta do hospital, hoje diz-se que um é corrupto, que o outro é acusado, amanhã diz-se o contrário e a banda segue», lamenta, fazendo scroll pelos post antigos e recentes do seu ricardosantosblog.blogspot.com. «Há histórias que têm de ser contadas. Há exemplos que têm de ser seguidos. Há personagens que têm de ser desvendadas. E nós merecemos um jornalismo diferente que nos mostre que ainda vale a pena», diz, logo a abrir.

Há dias, para confirmar que não é um cruzado e que a actividade de blogger positivo vale mesmo a pena, deu-se ao trabalho de contar desgraças nos jornais: «Contei uma média de cinquenta mortos por dia, entre bombas no Afeganistão, tiroteios entre genros e sogros, vizinhos e ex-maridos ciumentos». Por isso, diz, entende que sejam o Correio da Manhã, a TVI ou a Rádio Renascença os veículos líderes de audiência em Portugal. «Mas o jornalismo não é nem pode ser apenas dar aquilo que alguém acha que as pessoas querem. Eu comovo-me mais com uma notícia positiva e sei que há mais gente como eu», contesta, feliz por reconhecer nos 25 seguidores fiéis do seu blogue um capital de concordância com um velho princípio que aprendeu nos bancos da escola: «Uma história tem sempre pelo menos duas versões. É preciso procurar as duas. Mas eu, se tiver de escolher, escolho sempre o lado solar da vida!».

Patrícia Maia fala de um país «numa situação frágil mas onde não é difícil encontrar todos os dias exemplos de boas práticas, de bons exemplos e notícias positivas». O catedrático Boaventura Sousa Santos vê num restaurantezinho de comida simples e caseira de muita qualidade que conheceu no périplo de apresentação do seu livro, um sinal de empreendedorismo jovem e com valor; Gabriela Cabral sente, correndo o risco assumido de generalizar, «que a malta jovem é que está a mudar isto», porque os da sua faixa etária «são uma desgraça».

Bestsellers mundiais de auto-ajuda como O Segredo, de Rhonda Byrne, ou As Sete Leis Espirituais do Sucesso, de Deepak Chopra, alertam-nos para uma possibilidade que o cartesianismo se recusa a aceitar, mas a que a física quântica veio dar achegas valorosas: a de que são os nossos pensamentos e sistema de crenças que formam a nossa realidade. Transposta aqui para o rectângulo, a teoria diz que se muitos acreditarmos que Portugal é um país fantástico, capaz e excelente, e se cada um desses muitos conseguir levar pelo menos um dos outros a ver o mesmo quadro, Portugal é um país fantástico e excelente. Venha o que vier.

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