Portugal já integra rede europeia de centros de excelência da fibrose quística

Desde 12 de julho que o nosso país integra a rede europeia de centros de referência que tratam a fibrose quística. O Centro de Referência do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte candidatou-se, por considerar que tinha condições. Foi auditado e teve uma classificação de 97,86%. Neste momento, é o segundo da Península Ibérica.
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A notícia chegou ao Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte um dia depois da morte de Constança Braddell, a jovem de 24 anos que apelou à aprovação do medicamento inovador, Kaftrio, que está a mudar a vida dos doentes com fibrose quística.

A distinção foi recebida por todos com "alegria" e, sobretudo, com "um sentimento de missão cumprida" por parte dos profissionais, como Pilar Azevedo, coordenadora da área dos adultos do Centro de Referência de Tratamento da Fibrose Quística, que reúne dois polos, o pediátrico e o de adultos. "A notícia fez-nos sentir que estava consolidada a nossa posição em termos de reconhecimento como uma unidade que trabalha dentro dos standards exigidos a nível nacional e internacional, o que nos deu bastante tranquilidade", sublinha a médica.

Desde o dia 12 de julho, que Portugal integra o roteiro de centros de referência da Europa que tratam de forma especializada a doença. Na Península Ibérica há agora dois, este e o centro de Vall d"Hebron, em Barcelona.

Uma distinção que vai permitir que os nossos doentes possam receber o mesmo tratamento que recebem no país em qualquer outra parte da Europa. Segundo explica Pilar Azevedo, "vivemos num mundo globalizado e os nossos doentes podem querer ir estudar fora, os que vivem lá fora podem querer vir estudar para Portugal, ou podem apenas querer viajar de um lado para o outro, e partir de agora passam a ter a certeza de que vão para onde forem na União Europeia, seja Espanha, Alemanha, Bélgica, ou outro país, serão tratados da mesma forma que em Portugal".

A candidatura foi feita em 2019. Em março de 2021, em plena pandemia, "o centro estava a receber a informação de que iria ser o único dos que se candidatou à rede europeia a ser auditado pela ACSA - modelo de acreditação de unidades de saúde. Na altura, pareceu-nos que a seleção poderia ser difícil", contam-nos. Mas não foi.

A auditoria tem início a 24 de maio, "tudo de forma online por causa da pandemia". A médica conta: "Tivemos de filmar e de mostrar, desta forma, todo o serviço aos dois auditores que estavam na Suécia, um sueco e outro espanhol, mas, no final, a 12 de julho, informam-nos que a nossa classificação tinha sido de 97,86%. Ficámos muito contentes, porque isto coloca o nosso país no mapa do roteiro dos centros de referência de tratamento da doença".

Mais um passo nas conquistas que o país tem vindo a alcançar desde os anos de 1980. Celeste Barreto, coordenadora-geral deste centro de referência e da área pediátrica, relembra mesmo que um dos primeiros passos foi o ter-se conseguido "a comparticipação dos medicamentos para estes doentes em 1988". A publicação da portaria só foi em 1989. Na altura, era ministra da Saúde Leonor Beleza e secretário de Estado Costa Freire, e o feito só foi conseguido após muita pressão do "Dr. Luís Marques Pinto".

Segundo conta, "o ministério pediu-nos que fizéssemos as contas de quanto custaria cada tratamento. Foram os médicos que as fizeram. Deu 120 contos por doente (cerca de 600 euros)." Um número bem diferente dos 140 mil que vai custar cada doente com Kaftrio, mas, na altura, explica a médica, "a terapêutica era só para as enzimas pancreáticas": "Eram usados antibióticos por via endovenosa nos hospitais. Não havia outras terapêuticas que pudessem ser feitas no domicílio".

Na altura, a esperança média de vida era até aos 20 anos, e "os medicamentos eram só dados nos serviços de pediatria, mas as crianças começaram a resistir e apareceram os doentes adultos e tivemos de voltar a pressionar para que a comparticipação fosse alargada aos jovens, o que foi conseguido em 1995". De lá até agora, o caminho tem sido longo, mas com muitos ganhos. Como dizem, a fibrose quística é um caso de sucesso da medicina.

Em 1989, houve outro avanço na doença, a descoberta do gene que a provoca. Profissionais, doentes e famílias acreditaram que de seguida se chegasse à descoberta de uma terapêutica genética que mudasse a história da fibrose quística e o seu impacto. Não foi assim. A solução inovadora chegou agora, mais de 20 anos depois.

Nesse mesmo ano, há também mudanças na organização dos cuidados. No Hospital de Santa Maria, na área pediátrica é criado um centro especializado para o tratamento da fibrose quística. "As crianças foram tendo a possibilidade de chegarem a idades cada vez mais avançadas e a certa altura a pediatria deparou-se com o problema de ter muitos adultos. Foi então que se sentiu a necessidade de criar um centro para adultos", explica Pilar Azevedo.

Foi aqui que a médica começa a sua vida dedicada ao tratamento desta doença. "Eu sou pneumologista e fui contactada para criar esse centro. Fiz formação nesta área com a pediatria, onde já estava a Dr.ª Celeste Barreto e outros colegas, fiz cursos lá fora e, em 2003, autonomizamos o centro especializado de fibrose para adultos".

O hospital passa então a ter um centro de referência com dois polos o pediátrico e o de adultos, que trabalham juntos desde então e com uma "transição que acaba por ser modelar para muitas doenças genéticas", mas só em 2017 é que este centro e os restantes quatro espalhados pelo país passam a ter oficialmente a nomenclatura de centros especializados.

Em 2013, houve novo avanço no diagnóstico precoce da doença ao conseguir-se que todas as crianças nascidas em Portugal sejam rastreadas para esta doença. Este rastreio neonatal acabaria por ser generalizado em toda a Europa em 2015. Logo na altura, passa também a ser possível a realização de diagnóstico pré-natal.

É depois destas conquistas que o centro do CHULN se candidata à rede europeia de ensaios clínicos, juntamente com outros 27 centros, por considerar ser importante estar mais perto da investigação em laboratório, por ser importante que os doentes portugueses também entrassem em ensaios clínicos e pudessem usufruir das terapêuticas que estavam a ser desenvolvidas. Pilar Azevedo conta que foram selecionados 18 centros para continuar o processo de candidatura, o do CHULN era um deles. E também passou na seleção. Este centro de Lisboa acabou por integrar a rede europeia CTN - Clincial Trial Network. Agora, já são 43 centros, mas basta referir que, em 2019, "fomos um dos cinco centros europeus com mais ensaios clínicos de grande complexidade nesta área, o que para nós também um motivo de orgulho, tendo em conta a dimensão do pais e os nossos recursos", refere Pilar Azevedo.

Este trabalho com a rede CTN "foi muito importante, permitiu que os nossos doentes tivessem entrado em ensaios clínicos, colocando o Portugal no circuito da investigação", aumentando também a colaboração direta entre equipas de investigação em laboratório e a atividade clínica.

Uma relação cada vez mais fundamental para melhor tratar os doentes, já que procura cada vez mais, não é um medicamento para todos os doentes, mas um medicamento adequado a cada doente. A fibrose quística é mesmo pioneira no tratamento personalizado. A pneumologista recorda que a doença foi referida pelo ex-presidente dos EUA, Barak Obama, para salientar esta tendência de tratamento personalizado.

Em Portugal, ou melhor, no CHULN, esta relação entre investigação e prática é possível e cada vez mais fundamentada, por a unidade hospitalar integrar o Centro Académico de Lisboa. "Estamos integrados numa triangulação, hospital, centro de investigação, iMM (Instituto de Medicina Molecular) e universidade.

Um percurso que tem agora nova conquista, a rede europeia de centros de referência, o que aos profissionais dá um certo sentimento de "missão cumprida".

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