"Portugal é um dos países que mais poderão sofrer com o Brexit"

DN e TSF promoveram nesta quarta-feira uma tertúlia subordinada ao tema "Brexit, que Brexit?".
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Todas as notícias podiam ter uma banda sonora. E a de que amanhã, dia 31 de outubro, não haverá Brexit podia muito bem ser acompanhada do tema É p'ra Amanhã de António Variações, faz notar o jornalista e diretor adjunto da TSF, Ricardo Alexandre, passando o tema no início de uma tertúlia DN-TSF dedicada ao Brexit, que nesta quarta-feira decorreu na Universidade Católica, em Lisboa, com cobertura jornalística nos sites de ambos os órgãos de comunicação e transmissão na rádio durante a tarde.

A pergunta que se impõe, desde logo, é: porque é que o Reino Unido, afinal, nunca mais sai da União Europeia (UE)? "Este processo de desintegração [apesar de estar previsto nos tratados a saída de um Estado membro] é mais difícil do que se previa. Estamos num processo de separação que, como todos os processos de separação, é longo. Como nos divórcios, as coisas levam mais tempo do que no casamento, o processo de união. Há aqui uma questão que é específica do Reino Unido e que é o calcanhar de Aquiles deste processo, que é a fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte. Estou convencida de que o Brexit vai acontecer, num tempo mais demorado do que aquilo que se poderia prever, do que aquilo que seria desejável", começa por constar Patrícia Fragoso Martins, professora de Direito na Universidade Católica.

Ouça o debate na íntegra:

"A 31 de janeiro [nova data do Brexit após ter sido concedida uma terceira extensão do artigo 50.º pela UE27] inicia-se uma nova fase que Bruxelas há muito deseja e que é o pedido oficial do pedido de transição. Até 2020 ou, havendo extensão [também aí], até 2022, se os lideres da UE a possibilitar. Da parte de Bruxelas tem havido uma posição muito coerente. [A ex-primeira-ministra] Theresa May ativou o artigo 50.º [a 29 de março de 2017] sem saber se tinha o apoio da Câmara dos Comuns para o fazer. E quando o faz, o relógio começa a contar dois anos. O Reino Unido percebeu entretanto que o divórcio é um processo mais penoso do que o casamento. Estão a ser antecipadas questões que só seriam debatidas no período de transição. Isso fará que o período de transição seja mais curto? Não necessariamente", afirma, por seu lado, Ana Isabel Xavier, especialista em assuntos europeus e investigadora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). "A UE mostrou abertura para que o Reino Unido faça o seu processo interno. Tem mais três meses para o fazer. Não será por causa da UE que o Brexit não acontecerá de forma ordenada. Aí, penso que UE tem atuado de forma coerente", nota a académica.

"Isto não vai terminar a 31 de janeiro", sublinha Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. "Isto já nem é Brexit, é mais um englexit. A Irlanda do Norte é o dano colateral deste processo todo. A Escócia é uma das próximas etapas de dano colateral de tudo isto. A Escócia não vai aceitar a saída da UE e poderá caminhar para um choque constitucional do género Catalunha, embora sem tanta violência, se o Parlamento central [em Londres] recusar um novo referendo sobre a independência. O Partido Conservador é um partido essencialmente inglês", nota o especialista em assuntos europeus e cronista do DN.

Efeitos colaterais de longo prazo

"Independentemente de Boris Johnson ganhar ou não [as eleições antecipadas de 12 de dezembro], independentemente do que Bruxelas pode fazer ou não, há aqui outros aspetos a ter em conta: os catalães olharam para a Escócia como um modelo inspirador, mas as coisas vão-se reverter. Na Irlanda do Norte, apesar de o DUP [Partido Unionista Democrático que apoia Boris Johnson em Westminster] ser dominado por elites, o eleitorado protestante rural da Irlanda do Norte está a favor deste acordo [renegociado por Boris Johnson e pela UE27 e anunciado a 17 de outubro]. O Parlamento escocês vai pedir um segundo referendo [sobre a independência escocesa], o Parlamento de Westminster poderá dizer que não [tem de dar autorização como aconteceu em 2014]. Mas esse não é complicado, uma vez que as coisas não se vão manter iguais depois de o Reino Unido sair da UE. Há o perigo de uma parte do eleitorado do SNP [Partido Nacionalista Escocês] enveredar por uma lógica de desafio como existe na Catalunha", alerta Leonídio Paulo Ferreira, jornalista e subdiretor do Diário de Notícias.

"Vamos ter de negociar um acordo de comércio entre o Reino Unido e a UE. Não será algo facilmente atingível em 11 meses. A fase de transição tem tudo para ser prorrogada", alerta Pires de Lima. "Depois ainda falta a relação futura, que está contida numa declaração política muito generalista e que, a meu ver, não tem sido falada o suficiente", nota o analista na tertúlia, que foi aberta a professores e alunos da Católica, bem como a leitores e ouvintes do DN e da TSF, tendo sido subordinada ao tema "Brexit, que Brexit?".

"O Reino Unido não é o único estado que participa apenas parcialmente nas políticas europeias, é preciso desmistificar isso. Mas é verdade que, sempre que pôde ficar de fora, o Reino Unido aproveitou. Estes mecanismos de integração à la carte são muito difíceis de explicar, são muito ricos do ponto de vista do processo de decisão, mas também são complicados, porque acabam por gerar pequenos clubes dentro da UE [espaço Schengen, zona euro, Procuradoria-Geral Europeia etc...]. Sempre houve muitas derrogações, opt-out, etc... No período de transição continua a aplicar-se a legislação em vigor na UE, exceto por algumas modificações introduzidas pelo acordo de retirada. É um phase-out. Vai ser interessante ver como é que se vai aplicar o acordo de retirada, do ponto de vista jurídico. Mas, politicamente, também é uma oportunidade que os Estados têm de debater o que será o quadro das relações futuras", refere Patrícia Fragoso Martins.

Bernardo Ivo Cruz, editor da The London Brexit Monthly Digest e ex-presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa no Reino Unido, considera que não é forçoso que o acordo de comércio futuro entre Londres e a UE27 demore uma eternidade a ser negociado. "Aqui parte-se do alinhamento que já existe [nas mais variadas áreas entre o Reino Unido e a UE] e, por isso, será mais fácil ir só pelas áreas em que se quer divergir [no futuro]. Assim, o divórcio não tem de ser necessariamente mais difícil do que o casamento", diz o especialista.

O impacto do Brexit e o papel de Portugal

No entender de Bernardo Ivo Cruz, "Portugal é um dos países que mais poderão sofrer com o Brexit e isso piorará quanto mais desordenado for o Brexit". O alargamento de 2004, recorda, "veio alterar muito a configuração da UE sem se ter mudado o orçamento da UE. O centro da UE mudou-se para cada vez mais próximo da Alemanha de Leste. A saída do Reino Unido pode ainda tornar a UE mais continental, sobretudo no que diz respeito à zona euro. É preciso ter atenção a isso e reforçar a nossa dimensão atlântica, a CPLP, a diáspora, a nossa capacidade de ser um negociador honesto na cena internacional. Esse é um papel que Portugal tem vindo a assumir, que é a de ser percecionado como negociador honesto que conhece o mundo inteiro e dá-se bem com toda a gente. Portugal, Espanha, França e Irlanda são os países de vocação atlântica dentro da UE. Com a Espanha e a França mais viradas para o Mediterrâneo, a dimensão atlântica, após o Brexit, poderá ficar entregue a Portugal e à Irlanda, basicamente".

"Não vejo ganhos para ninguém [com o Brexit] e é preciso ter em atenção todos os efeitos colaterais. Não há debate em Portugal sobre isto. Vamos ter um Reino Unido a puxar por uma aliança a norte, que pode envolver Irlanda e bálticos, jogando ao mesmo tempo o jogo europeu sem se ter o poder de se sentar à mesa. Para um Estado, como Portugal, que está sempre a tentar fazer os equilíbrios entre as dimensões continental e atlântica, isso é importante. Temos um Reino Unido fora dessa dimensão continental e temos, pela primeira vez, uns EUA a favor da desintegração comunitária e céticos em relação à Aliança Atlântica [NATO]. Portugal tem de viver com isto, pela primeira vez, dois grandes aliados [seus] a pôr em causa estas duas dimensões [a continental e a atlântica]. Nada será como dantes, nem a estabilidade interna do Reino Unido. Espanha, em quatro anos, teve quatro eleições; o Reino Unido, três eleições. Nada disto é normal. Isto vai estilhaçar a estabilidade. Pode não afetar a estabilidade económica, mas afeta a estabilidade política. Portugal está exposto ao Reino Unido, à Espanha e também aos EUA. Temos de saber ler isto e responder a isto", sublinhou, por seu lado, Bernardo Pires de Lima.

"Há ainda um elefante na sala", consta o investigador da Nova, "que é a Rússia". E Portugal, nota, "não é claro aí. Não se percebe até que ponto critica ou não a Rússia. Portugal é um Estado com interesses. Não se pode estar com movimentos dúbios em relação a crítica. Pela primeira vez, desde 2018, nós importamos petróleo à Rússia, ao Azerbaijão e ao Cazaquistão. Somos um país Atlântico, mas pela exportação de petróleo parecemos mais um país do mar Negro".

Na hora de contabilizar perdas e ganhos, Leonídio Paulo Ferreira defende que a UE tanto perde com o Brexit como ganha. "A UE perde com o Brexit. Por exemplo, se antes tinha dois países com direito de veto no Conselho de Segurança da ONU, agora vai passar a só ter um. Mas também consigo ver uma vantagem no meio do caos. Se o Reino Unido sair da UE de forma ordenada, isso servirá de vacina involuntária para várias tentações populistas que cavalgavam a questão de saída da UE. É algo que pode trazer votos, no imediato, mas que a longo prazo pode causar grande desgaste, como se viu no caso do Reino Unido. A UE vai continuar a usar como língua franca a língua do país que se vai embora. A saída do Reino Unido, do ponto de vista simbólico, faz perder muito à UE. Se, depois da saída dos britânicos, a UE será mais coesa, é uma questão sobre a qual tenho dúvidas, porque há tanta diversidade, que isso poderá ser difícil. Veja-se o caso da Polónia, por exemplo, onde não existe qualquer apetência em relação à adesão ao euro."

O que esperar das eleições antecipadas de 12 de dezembro?

Os partidos e o Parlamento britânico, que nos últimos tempos quase não se têm entendido sobre nada, conseguiram chegar a um mínimo denominador comum e aprovaram, nesta terça-feira, a convocação de eleições legislativas antecipadas para 12 de dezembro. "Estas eleições vão ser sobre o Brexit, apesar de os conservadores tentarem fazer de conta que vão ser sobre questões internas [educação, saúde, segurança]. Os conservadores vão tentar ir buscar [apoio aos] círculos eleitorais que votaram pelo Brexit, embora a questão do País de Gales seja diferente. Não é líquido que o País de Gales fosse mesmo pelo Brexit [como expresso no referendo de 23 de junho de 2016]. O País de Gales ter votado pelo Brexit tem muito que ver com os chineses e com questões relacionadas com descontentamento sobre deslocalização económica", constata Bernardo Ivo Cruz, doutor em Ciência Política pela Universidade de Bristol.

O editor da The London Brexit Monthly Digest admite que as condições em que estas eleições se realizam são um convite à abstenção e, sobretudo, à abstenção dos jovens que são mais pró-europeus. ​​​​​"Os liberais democratas queriam que as eleições se realizassem no dia 9 de dezembro, porque no dia 12 os universitários já não estão nas universidades, onde estão inscritos para votar. A 12 [como defendia Boris Johnson e como foi decidido], já depois de as aulas terem encerrado, muitos desses jovens, pró-europeus, poderão contar como abstenção. Há quase 100 anos que não se fazem eleições em dezembro. Haverá poucas horas de luz, compras de Natal, etc... As condições de levar as pessoas a votar são menos conducentes à participação eleitoral."

Bernardo Ivo Cruz sublinha também o acordo que há entre vários partidos da oposição, como os liberais democratas, os nacionalistas escoceses, os Verdes e o Plaid Cymru (País de Gales), no sentido de não apresentarem, nas circunscrições, a nível local, candidatos que se sobreponham uns aos outros. O combate ao Brexit é, para eles, o principal. "Pode ser uma eleição, a nível local, cheia de coligações. Se o favorito for alguém do SNP, será ele o candidato, os outros retiram-se... Já fizeram isso numas eleições intercalares", recorda, referindo-se às eleições intercalares de agosto na circunscrição de Brecon e Radnorshire, em que a candidata liberal democrata e pró-UE Jane Dodds derrotou o conservador Chris Davies, graças a essa aliança.

"12 de dezembro vai ser uma eleição extraordinária. Vai ser uma campanha muito dura, muito populista, no sentido de dizer que ainda não saíram por culpa do Parlamento, dos tribunais, etc... Há três partidos que sabem o que querem: o Partido do Brexit [de Nigel Farage], os liberais democratas [de Jo Swinson] e o SNP [de Nicola Sturgeon]. Estes partidos já disseram o que querem. Os conservadores dividem-se entre os que querem Brexit com acordo e outros que não se importam de Brexit sem acordo. O que o Partido Conservador vai dizer na campanha é o que está no discurso da rainha, ou seja, questões internas pós-Brexit: questões ligadas à segurança, à educação e à saída. O Labour é que está aqui um pouco sem saber o que fazer. Vai ser um cerco aos trabalhistas feito pelos conservadores e um cerco aos conservadores feito pelos liberais democratas e pelo SNP", prevê Bernardo Ivo Cruz.

"As eleições de dezembro serão um segundo referendo. Os partidos irão focar-se neste acordo [do Brexit], a favor ou contra ele. Boris Johnson vai escudar-se no acordo, dizendo que queria fazer o Brexit a 31 de outubro, que foi o Parlamento que não o deixou e o obrigou a enviar para Bruxelas cartas um pouco dúbias [a pedir um novo adiamento ao abrigo da chamada lei Benn]. Boris Johnson vai focar-se no Reino Unido pós-Brexit durante a campanha. Os outros partidos vão capitalizar agendas locais e nacionalistas ou antiacordo. Será expectável desinformação sobre o acordo de Boris Johnson e será expectável grande abstenção por causa da fadiga que os cidadãos apresentam sobre a questão do Brexit. Não é por acaso que Jeremy Corbyn [líder do Labour] queria alargar o voto a eleitores com 16 anos e a cidadãos europeus a viver no Reino Unido [mais favoráveis à permanência do país na UE]. Isso obrigaria a atualizar os cadernos eleitorais. E atiraria as eleições já para 2020. A 12 de dezembro tudo estará em aberto", admite Ana Isabel Xavier, especialista em assuntos europeus e investigadora do ISCTE.

"Será interessante ver como vai ser discutido o acordo nesta campanha. O voto no Brexit [52% a favor e 48% contra no referendo de 23 de junho de 2026] parece-me que foi motivado por temas que pouco tinham que ver com o projeto europeu. Será muito difícil discutir os termos do acordo, que é um documento com 400 páginas e de uma complexidade jurídica enorme. Tenho dúvidas de que a questão política possa ser escrutinada de forma que o eleitorado perceba", refere Patrícia Fragoso Martins, da Universidade Católica. E aponta os holofotes para o líder da oposição trabalhista: "O Partido Trabalhista é o partido mais dividido, é onde há desencontros entre eleitores e membros do Parlamento, com uma liderança com dificuldade em abrir caminhos. Como é que Jeremy Corbyn vai implementar o que diz ser a campanha eleitoral mais ambiciosa de sempre no Reino Unido?"

"O problema deste processo já não é o Partido Conservador, mas sim o Partido Trabalhista. Jeremy Corbyn é um brexiteer por natureza que tem de fazer sínteses internas. Corbyn não é um líder que abre caminhos. E esse é também um dos efeitos colaterais de todo este processo", nota Bernardo Pires de Lima. E acrescenta: "Ninguém na esquerda europeia tem esperança em Jeremy Corbyn. O Partido Conservador tem uma enorme fatia de culpa no processo, mas também a tem o Partido Trabalhista, que tem uma liderança datada e que é falhada. Tenho dúvidas se as eleições são um segundo referendo ou não, porque os conservadores continuam na ordem dos 40% no que toca a intenções de voto. Boris Johnson vai fazer o que os britânicos querem: encerrar a página, debater o que vai acontecer daqui em diante noutras áreas."

"A saída, não amanhã mas a 31 de janeiro, só é possível porque existe Boris Johnson. Ele, ao contrário de David Cameron, sempre acreditou no Brexit. Apesar de ser um político nada coerente, Boris Johnson chega a estas eleições como o favorito. Desde que o Brexit ganhou, Boris Johnson foi o político mais coerente, isto dentro da incoerência a que temos assistido. Na política, a personalidade dos políticos é muito importante, porque há uma franja do eleitorado que não vai ler os tratados e que, na hora decisiva, vai votar naquele político que lhe transmite mais confiança. Boris Johnson não vai ser penalizado pelas aldrabices que andou a dizer e pelas fake news que pôs a circular [na campanha do referendo de 2016], porque isso é a vontade das pessoas", nota Leonídio Paulo Ferreira, avisando, porém: "Corbyn é um patinho feio, mas eu não o descartaria totalmente disto."

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