Portugal é sempre a mesma coisa

O que irrita é que correu tudo bem. Nem sequer correu mal o quebra-cabeças do ovo e da galinha, o dilema helleriano do sem passaporte não pode tirar cartão, sem cartão não pode tirar o passaporte, as senhoras muito simpáticas fez muito bem, primeiro tem de ser o passaporte, mas se não havia maneira de resolver
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Comecei o ano a tratar do Cartão de Cidadão, da Cédula profissional e do Passaporte, tudo caducado ou em vias de. Portugal é sempre a mesma coisa. Com o Passaporte e o Cartão de Cidadão usei o sistema de marcação prévia. Marquei tudo muito direitinho, recebi os e-mails de confirmação. Para o passaporte, era às 13.45, cheguei uns minutos antes, dei o nome ao segurança, ele anotou na lista. Sentei-me. Bateram as 13.45 e nada. Somos sempre a mesma coisa. Só me chamaram já eram 13.46. Com o Cartão de Cidadão ainda foi pior, mal dei o nome na porta, um minuto antes da hora marcada, já estava a ser chamado, mesa seis, demorou uns oito minutos, só não foi mais rápido porque o polegar esquerdo não estava a colaborar, menos força se faz favor é só pousar, não é carregar, mas dito com meiguice. Agora é esperar pelos documentos e pelo pin do cartão (para os podermos perder temos de os receber).

Esta coisa de marcar um serviço público ainda vá que não vá, embora coisas com horas marcadas seja a puxar para o alemão, agora chegar lá e não esperar é que não se compreende. A espera é uma componente essencial da relação de um povo com o poder e consigo mesmo. Tanto era algo imanente que os serviços públicos não têm sala de espera separada, são eles próprios a sala de espera. E nestes espaços há sempre um cidadão, ou uma cidadã, muito irritado que fala alto tentando arregimentar os outros, isto é sempre uma vergonha, já vim dali e dacolá e mandaram-me agora para aqui, estou aqui há horas, e a gente é que lhes paga, com os nossos impostos. Depois há o velhote, ou o casal de velhotes, bem vestidos, com belas pastas e documentos muitos e muito organizados, folhas com anotações, tudo preso por um clip que é retirado com muita cerimónia para mostrar à senhora do guichet que não quer ver nada, que sim que acredita, mas que está tudo no computador e que não tem de se preocupar que já na semana passada lhe disse que está tudo bem, e tem é de avançar a fila, ou a senha, porque somos todos avaliados no siadap pelo número de senhas, ou melhor cidadãos, que aviamos. Há o estrangeiro, acabado de chegar, o imigrante, que tirou uns dias para tratar de assuntos, há sempre uma senhora adormecida de braços cruzados à volta da carteira e de senha na mão que escorrega pelo banco abaixo e já só está apoiada pelas costas e calcanhares. Sem esperas, não dá para observar nada disto (ainda me lembro de quando fui tirar o Bilhete de Identidade, ao Arquivo, da primeira vez, na Estefânia, havia um casal aos beijos lá dentro, memórias que ficam).

O que irrita é que correu tudo bem. Nem sequer correu mal o quebra-cabeças do ovo e da galinha, o dilema helleriano do sem passaporte não pode tirar cartão, sem cartão não pode tirar o passaporte, as senhoras muito simpáticas fez muito bem, primeiro tem de ser o passaporte, mas se não fosse havia maneira de resolver. No fundo isto não é apenas modernização administrativa, é também psicologia administrativa. São momentos de tensão, mas uma tensão que não é a normal tensão do confronto burocrático, é uma tensão existencial, e elas sabem disso. Elas sabem que a gente não envelhece quando faz anos, a gente envelhece é quando renova o bilhete de identidade, e morrer aos bocadinhos é de cada vez que renova o passaporte, entregando ao Estado aqueles carimbos todos.

Por fim, a Cédula, mas não aquela que havia antes do BI, a Cédula da Ordem dos Advogados, que é como se fosse a Carta, porque só se tem se passarmos no Código. A Cédula da Ordem tinha sido entregue por causa das três semanas de governo, há um ano, num ritual de submissão do estado ao neocorporativismo, mas tudo bem, era preciso ir buscá-la. O problema é que numa tentativa anterior faltava a foto tipo passe (foto tipo passe é sempre um termo que é interessante tentar traduzir a um estrangeiro e olhar com atenção para a reação deles). Adiante, como não tinha a foto tipo passe atrasei o levantamento da Cédula. Graças a Deus deram-me uma guia. Guia é um conceito muito original da portugalidade, não temos o documento mas temos a guia, que é como se fosse o documento, mas não é porque é só a guia, vale por menos tempo, mas de resto é mesmo como se fosse. Na Ordem, quando lá cheguei já com as fotos tipo passe naquelas carteirinhas de plástico horroroso que nunca fecham e magoam as mãos já não era preciso fotos tipo passe, o sistema tinha evoluído e agora era um senhor muito simpático que tira a foto e sai logo a Cédula ali ao lado, a Cédula, que é um cartão, mas que é de plástico, aliás como os outros cartões, inclusive a própria Carta já nada é em papel, é só aguardar um minutinho dr., aqui está ela dr. O que também acabou com o negócio do plastificam-se cartões, uns senhores numas banquetas, ágeis na guilhotina, e até se podia plastificar outra vez se os cantos começassem a abrir e a esfarelar, ou o das carteirinhas para as cartas.

Enfim munido de Cédula, Cartão e Passaporte, um cidadão português de pleno direito, um cidadão de um Portugal que não é sempre a mesma coisa.

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