Toda a criança tem direitos, toda a criança merece viver bem e feliz, mas umas são mais crianças do que outras. Há crianças a quem é negado o direito fundamental de ser criança, o direito de viver com afeto, segurança e em família, como define a Convenção dos Direitos da Criança de 20 de novembro de 1989. Para estas nem sempre há receitas felizes, as respostas variam de país para país, e consoante o que cada sistema de proteção considera prioritário..O sistema português é diferente do inglês, do holandês, do norueguês, etc. A psicóloga Vânia Pinto diz que assenta muito nos afetos, enquanto em outros são mais profissionalizantes. Uns e outros seriam perfeitos se se encontrassem no meio-termo. A grande diferença de Portugal é que é um dos países que menos retiram crianças às famílias biológicas e que pouca ou nenhuma resposta ainda temos para o acolhimento familiar. "O sistema português privilegia intervenções que mantenham a criança com a família biológica. Porém, quando se dá a retirada, e nos raros casos em que a criança é colocada em acolhimento familiar, a medida assenta nos afetos", refere..De acordo com os dados recolhidos pela psicóloga, em Inglaterra, seis em cada mil crianças são retiradas às famílias biológicas. Na Holanda, são oito em cada mil, na Noruega nove. Em Portugal, são apenas quatro em cada mil. Uma percentagem muito reduzida relativamente aos outros países, o mesmo acontece no que toca à colocação em acolhimento familiar. Em Inglaterra, do universo das crianças retiradas às famílias, 73,2% são encaminhadas para este tipo de acolhimento, na Holanda esta percentagem é de 51,4% e na Noruega é de 90,9%. Em Portugal, a percentagem em acolhimento familiar é ínfima, 3,3%..A psicóloga Vânia Pinto, a doutorar-se em Oxford na área do acolhimento familiar, acredita que se tal acontece é porque a lei portuguesa considera a retirada da família biológica como um último recurso, privilegiando o trabalho de prevenção e de intervenção junto desta, salientando que o sistema português é dos que tem mais crianças em acolhimento residencial (em instituições) e menos em acolhimento familiar, o que já não acontece em tantos outros países da Europa.."Em comparação com o inglês, por exemplo, Portugal retira crianças mais tardiamente, é mais assistencialista e menos profissionalizante." No entanto, sublinha, também tem as suas vantagens e começa a sobressair dos demais ao aprovar o novo decreto-lei que regulamenta medidas inovadoras..Vânia Pinto, de 35 anos, fala ao DN do seu gabinete em Oxford, onde está desde 2014 a fazer doutoramento, sobre o acolhimento familiar de crianças retiradas às famílias biológicas. "A qualidade das famílias de acolhimento e os fatores de sucesso da colocação em Inglaterra e Portugal" é o título que deu à tese que terá de defender no dia 5 de março do próximo ano..Durante estes cinco anos, a psicóloga - que em Portugal colaborou com o Centro de Investigação e Inovação em Educação, a Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, e com a AMI, como psicóloga clínica junto de famílias carenciadas - investigou, analisou e concluiu que o sistema português ainda está muito direcionado para a manutenção da relação com a família biológica e muito pouco para soluções como o acolhimento familiar ou até para o apadrinhamento civil, que, embora esta medida não esteja no âmbito do seu estudo, diz ser uma solução inovadora. "Da forma como está desenhada não tenho conhecimento que exista noutro país e é uma pena que não seja mais utilizada, pois permite pensar no melhor para a criança, equilibrando os laços com a família biológica e os padrinhos, e isso é muito importante.".Quanto ao acolhimento familiar, que é o foco da sua tese, a psicóloga regista que, apesar de já se falar mais agora do que em 2008, ainda é uma cultura que não está interiorizada no sistema português. E salvaguarda: "Não sei se é por não fazer parte da nossa cultura - porque até somos um povo muito acolhedor - ou se é porque o sistema nunca o permitiu até agora. O que sei é que há muitas instituições abertas à mudança e técnicos ávidos para termos cada vez mais crianças em acolhimento familiar em vez de as termos em acolhimento residencial. Portanto, o paradigma instituído tem de mudar. Uma criança está bem quando está integrada numa família cuidadora. É muito importante para o seu desenvolvimento que esteja vinculada a uma figura de referência.".crianças acolhimento Infogram.O paradigma regente tem como prioridade o encaminhamento da criança para uma instituição e é este que tem de mudar, mas, para tal acontecer, reconhece a psicóloga, "é preciso haver um maior investimento na medida de acolhimento familiar, no desenvolvimento de campanhas e de mais sensibilização da população em geral"..Ao comparar Portugal com Inglaterra, Vânia Pinto diz que neste país a cultura do acolhimento familiar está instituída. Aliás, é a solução prioritária para uma criança em risco, situação de urgência ou emergência - já há muitos anos. O sistema social de proteção das crianças está mesmo assente no paradigma deste tipo de acolhimento. Por isso, os ingleses continuam a apostar na formação dos técnicos, dos acolhedores e na sensibilização da população em geral.."Há campanhas constantes sobre a necessidade de acolher crianças, quer seja nos supermercados ou nos autocarros, etc. Todos os anos, durante duas semanas, a comunicação social desenvolve este tema, não se fala de outra coisa, e os serviços sociais trabalham também neste sentido junto da população em geral. É uma cultura que se respira em Inglaterra, o que não acontece em Portugal", argumenta..Admite que quando começou a investigar o tema do acolhimento familiar em Portugal eram raros os que sabiam do que se estava a falar. Agora, já é diferente, "já se lê sobre nos meios de comunicação social, já há algum conhecimento adquirido da população e já se vê grandes desenvolvimentos ao nível da legislação". Contudo, "ainda faltam campanhas nacionais e regulares para a população e para recrutar novas famílias de acolhimento"..Portugal diferente de Espanha, Holanda, Noruega e de Inglaterra.Portugal é diferente de Espanha, Holanda, Noruega, Inglaterra, Irlanda, Itália, Roménia, Suécia em que o acolhimento em família, quer tenha laços biológicos ou não, é a prioridade. Só vão para o acolhimento residencial crianças que se encontram em situação excecional..Ou seja, "Portugal não só retira poucas crianças às famílias em comparação com outros países mas também é dos que tem menos acolhimento familiar - o que não se percebe, pois somos um povo acolhedor e de afetos -, como é dos que tem mais acolhimento residencial". Vânia Pinto espera que a entrada em vigor da nova lei "seja um momento de mudança, uma vez que até então as estatísticas nacionais apontam como solução preferível para a larga maioria das crianças retiradas à família o acolhimento residencial, que, em 2017, foi de 87,6%", argumenta..A psicóloga portuguesa sublinha que a sua investigação veio demonstrar que, em Inglaterra, o acolhimento residencial só é solução para crianças que já passaram pelo acolhimento familiar e não se enquadraram, para crianças mais velhas que não o querem, para situações temporárias de grupos de irmãos em que é difícil arranjar uma família que os acolha a todos ou para crianças com problemas graves a nível comportamental e emocional. É comum haver instituições apenas com três ou quatro crianças, o que não acontece no nosso país..Em Portugal, argumenta, "o grosso das crianças ainda é encaminhada para instituições, porque quase que não há famílias de acolhimento. Penso que não tem havido diretrizes muito claras para que se avance no sentido do acolhimento familiar, mas espero sinceramente que a nova legislação ajude neste aspeto". Porque os resultados "nem se comparam", comenta..Na tese que agora termina em Oxford, Vânia Pinto diz que teve a oportunidade de realizar um estudo longitudinal, que acompanhe a retirada da criança à família biológica até à sua passagem pelo sistema de acolhimento a longo prazo, mas há muitos que falam disto mesmo e que dão como certo que o desenvolvimento de uma criança que passe pelo acolhimento familiar é diferente do de uma que tenha vivido em acolhimento residencial.."Uma criança em acolhimento familiar desenvolve laços de afetividade e mantém a ligação a esta família após o término da medida. A criança volta nas épocas festivas, nos aniversários, mantém a relação e isto tem um impacto tremendo no seu desenvolvimento intelectual, emocional e comportamental", afirma. Aliás, de acordo com o seu estudo, "crianças com uma relação próxima com os seus acolhedores apresentam menos dificuldades nas áreas da relação com pares, problemas de conduta e hiperatividade"..A psicóloga define o sistema inglês como profissionalizante - apontando características que vão desde a formação dada a técnicos, que têm de fazer o acompanhamento intensivo das famílias, com visitas regulares, para perceber que tipo de apoio necessitam, quer seja psicológico quer seja monetário - até ao que estão a fazer de bem e de errado quanto à saúde, alimentação, educação e laços afetivos..Explicando que, apesar de "na lei inglesa não estar tabulado o valor do apoio financeiro, cada família que acolhe uma criança recebe em média entre 200 e 300 libras por semana, existindo outros apoios extras face às necessidades específicas que as crianças têm. As escolas têm um orçamento específico para crianças em acolhimento, através da Virtual School. Os serviços sociais trabalham muito próximos dos acolhedores e das crianças. É comum os acolhedores terem de fazer um número mínimo de formação ao ano. Existem vários encontros e atividades para juntarem os acolhedores"..Em Portugal, refere, o presente sistema de acolhimento familiar assenta muito mais nos afetos, na vontade de fazer para ajudar o outro, na vontade de o tornar um filho. Por isso, defende, que o sistema ideal seria aquele que conseguisse alcançar o equilíbrio entre o sistema inglês e o português. Ao português, argumenta, falta em algumas situações a parte mais profissionalizante, visitas regulares, acompanhamento frequente das famílias acolhedoras e mais formação para estas famílias e para os próprios técnicos..A psicóloga critica o facto de o sistema português não considerar o acolhimento em família alargada, a que tem laços biológicos com a criança, como acolhimento familiar, que é o que está consignado em países como Espanha, Holanda, Irlanda, Itália, Inglaterra, Roménia, Suécia. No entanto, acredita que "a nova legislação portuguesa traz desenvolvimentos nesta matéria, como a possibilidade de atribuição das responsabilidades parentais à família acolhedora e maior apoio financeiro, bem como inovações no que diz respeito à licença parental". .Seleção das famílias deve ser feita mediante critérios rigorosos e claros.Vânia Pinto espera que este Decreto-Lei torne claros e rigorosos os critérios de seleção das famílias e das entidades que as vão avaliar, nomeadamente que "o processo de seleção das famílias siga diretrizes que enquadrem o conhecimento técnico do contexto português e das investigações que têm vindo a ser desenvolvidas"..Com base nos resultados alcançados pelos seus estudos, a psicóloga deseja que as mudanças que possam vir a ser operadas no sistema português permitam promover na prática a relação da criança com a família acolhedora e a biológica, a não ser que seja de todo inadequado. "A criança beneficia desta relação para manter a sua identidade, para saber de onde vem, qual é a sua história, e um dia poder responder a todas as questões que se lhe coloquem.".Em Inglaterra, por exemplo, existe um grande investimento por parte dos acolhedores na manutenção desta relação e na promoção da reunificação com a família biológica. Há até o que se chama de Livros de Memórias, uma espécie de álbum da história de vida da criança que vai sendo construído e que a acompanha independentemente de onde seja colocada..Em Portugal, a nova legislação já considera como um direito da criança ou do jovem o participar nas decisões do seu destino, mas quando se trata de adoção ainda é tudo muito fechado, há uma quebra de laços com a família biológica..Entre Portugal e Inglaterra quem são os bons acolhedores?.Para a sua tese, a psicóloga realizou estudos qualitativos - que envolveram 19 grupos de discussão ou de debate (11 grupos em Inglaterra com 53 participantes e oito grupos em Portugal com 46 participantes) e entrevistas a jovens em acolhimento e com experiência em acolhimento, acolhedores e assistentes sociais - e quantitativos através da aplicação de questionários a acolhedores que tinham pelo menos uma criança em acolhimento, tendo de ter a criança entre os 4 e os 17 anos, e estado em acolhimento com estes acolhedores há pelo menos um ano. Ao todo, foram 740 acolhedores Ingleses (47 autoridades locais e 30 IPSS) e 53 acolhedores portugueses, de oito distritos, de uma região autónoma, e de uma IPSS.E já tem conclusões. Para Portugal o bom acolhedor é definido como aquele que dá carinho, cria laços de afetividade com a criança, que a integra na sua família como um filho, promovendo o seu desenvolvimento e que, em caso de ser benéfico, promova a reunificação com a família biológica ou a adoção. .Para o sistema o acolhimento familiar é considerado de sucesso quando se foca na parentalidade, quando, na prática, o acolhimento familiar é quase uma adoção..Em Inglaterra, o bom acolhedor é aquele que consegue manter o nível de afetividade ajustado ao que é o mais indicado para a criança, poderão integrar as crianças como filho, mas este não é o objetivo principal do acolhimento, uma vez que consideram essencial a criação de um espaço seguro, que promova o desenvolvimento da criança enquanto esta espera por voltar à família biológica ou ser adotada. Caso a reunificação ou adoção não sejam possíveis, então cuidarão da criança com vista a preparar a sua autonomia. .O bom acolhedor é o que trabalha em grande proximidade com os técnicos de acompanhamento e instituições de enquadramento. Na perspetiva do sistema inglês, a colocação teve sucesso se a criança tiver alcançado um bom desenvolvimento, estiver estável até ser reunificada à família biológica ou até à adoção ou, em última instância, se tiver de ficar em acolhimento fazendo parte da família como um filho. "Na opinião dos jovens em acolhimento e jovens com experiência de acolhimento é considerado um acolhimento positivo se a criança/jovem for capaz de manter esta relação no futuro", explica..Os resultados das amostras recolhidas por Vânia Pinto revelam que as colocações em Portugal tinham maior duração (uma média de 5,2 anos) do que as colocações em Inglaterra (uma média 3,8 anos), que os acolhedores ingleses têm mais competências profissionais do que os portugueses e que, no seu percurso, os ingleses acolhem um maior número de crianças dos que os portugueses - 18 crianças face a quatro para os portugueses. Tanto uns como outros referiram terem mantido uma relação próxima com a criança em acolhimento.."Em ambas as amostras, uma boa relação é percebida como importante uma vez que está associada a serem reportadas menos dificuldades nas crianças em acolhimento, na área da relação com pares, problemas de conduta e hiperatividade", refere a psicóloga..A pouco mais de um mês para os 30 anos da Convenção dos Direitos da Criança, a psicóloga espera que "esta investigação, entre outras realizadas no âmbito nacional e internacional, possa contribuir para o desenvolvimento da medida de acolhimento familiar e que crianças retiradas às suas famílias biológicas tenham cada vez mais o direito a ser crianças e a viver com afeto, segurança e em família".