Portugal distingue-se por ter mais tráfico para abusos no trabalho
Os habitantes de Beja há muito que se habituaram a ver gente de outros continentes, mas desta vez, é diferente: os asiáticos que circulam pela cidade têm apelidos portugueses. São timorenses, a quem prometeram emprego bem pago em Portugal. E até lhes "emprestaram" dinheiro para os bilhetes de avião. Chegaram e nada aconteceu. O Jorge Costa, o Zeca Soares, a Justina Carvalho, o Mário Soares, a Dina Ramos, o Gevalino Guterres, e tantos outros, trabalharam praticamente de graça - quando trabalharam -, viveram em casas sem condições e a dívida que contraíram duplicou.
Sem trabalho e sem dinheiro, tornaram-se sem-abrigo, até serem acolhidos por instituições. Os governos de Portugal e Timor-Leste tiveram de intervir. A Cáritas Diocesanas de Beja acolheu 146 timorenses desde 18 de agosto de 2022, dos quais restam 12, além de 11 utentes de outras nacionalidades, igualmente vulneráveis.
Situações como esta envolvendo estrangeiros são frequentes em Portugal.
Somos um país onde o tráfico de seres humanos para exploração laboral é dominante, ao contrário do que acontece no resto do mundo, em que predomina a exploração sexual. Facto referido nos relatórios nacionais e internacionais. A vulnerabilidade da pessoa é determinante para a sua sinalização como vítima de tráfico. Depender totalmente do empregador, não possuir recursos económicos, desconhecer a comunidade local, ser obrigado a aceitar as condições em que vive.
Entraram em Portugal 74 66 timorenses entre 1 de janeiro de 2022 e 31 de março de 2023, três em cada quatro partiram. Não é o caso da maioria dos 146 timorenses apoiados pela Cáritas de Beja. "Permanecem em território nacional, a trabalhar em várias empresas de norte a sul, sobretudo nos setores da restauração, social, agrícola, indústria e construção civil. Uma parte destes cidadãos migraram para outros países da União Europeia e alguns retornaram a Timor-Leste", explica Ana Soeiro, assistente social responsável pelo casa de acolhimento.
Destaquedestaque378 vítimas sinalizadas em 2022
Foram encaminhados pela EME (Equipa Multidisciplinar de Emergência) Alentejo, uma das cinco regionais do país para apoiar as vítimas de tráfico de seres humanos. Deram-lhes roupas, produtos de higiene pessoal, possibilitaram-lhes cuidados de saúde, psicossocial e a aprendizagem de português. Tentam encontrar-lhes emprego.
O grupo com quem o DN falou faz as refeições na Cáritas e dorme na Estrutura de Acolhimento Coletivo Emergência (EACE), antiga Casa do Estudante. São 20h00, acabaram de jantar, conversam, tentam esquecer os piores dias. O mais novo é Gevalino Guterres, 19 anos; o mais velho, Mário da Costa, de 50.
"Há muita tristeza, é muito tempo sem fazer nada, não podemos enviar dinheiro para a família. Também contactámos a embaixada, mas só podem tratar do passaporte, fazer os documentos, agora, em relação ao trabalho só o Estado português é que pode ajudar. Eu quero ficar em Portugal, mas trabalhar para portugueses. Os patrões indianos e paquistaneses querem que façamos muito trabalho e pagam muito pouco", lamenta Jorge Pereira da Costa, 24 anos, que chegou em julho.
Fala por si e pelos companheiros. "Fui para a cidade de Silves. Trabalhei um mês, só pagaram 300 euros e ainda tinha que tirar 100 euros para pagar a cama, ficava com 200. Depois vim para Beja, mas não consegui trabalho." Chegou a Portugal na época de colheitas na agricultura, as vindimas e, depois, a azeitona. O trabalho no campo começou a escassear, dezembro, janeiro e fevereiro foram terríveis. "Não consegui trabalhar e fui bater à porta da Cáritas, para ter comida e onde dormir". Jorge da Costa deixou, entretanto, a instituição por sua iniciativa. Mário da Costa permanece.
Destaquedestaque77 % das vítomas para exploração laboral
Muitas queixas, perguntas, querem saber mais do país. "Senhora, desculpa, ouvi nas notícias que os timorenses [os oriundos da Comunidade de países de Língua Portuguesa] têm um ano para procurar emprego, podem fazer a residência?", questiona Marçal Amaral, 26 anos, que chegou em setembro.
Fazem uma roda à volta de Alberto Matos, da Solim (Solidariedade Imigrante), a quem tratam por "pai". Nova catadupa de perguntas. "Os asiáticos e africanos têm por hábito chamar "pai" e "mãe" às pessoas mais velhas", diz o coordenador da secção distrital da associação, um ex-professor. Explica: "Prometeram-lhes um emprego na agricultura, emprestavam-lhes dinheiro para tratar dos documentos e viagens, entre 1500 e 2000 euros, mas a dívida é sempre o dobro".
Os timorenses chegaram a Portugal ao abrigo do acordo de isenção de vistos de curta duração de que beneficiam na União Europeia. Em 2022 entraram 6735, dez vezes mais do que em 2022. Saíram no mesmo ano 5019. E, até 31 de março, chegaram 731 timorenses, tendo regressado 581 em igual período. Ou seja, permanecem no país cerca 1900, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). A estrutura denunciou ao Ministério Público vários crimes contra estes cidadãos: "Participámos 20 situações por indícios de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas e angariação de mão-de-obra ilegal".
Destaquedestaque7466 timorenses entraram desde 1 de janeiro de 2022, sairam 5600
Investigam-se redes organizadas para angariar imigrantes para trabalhar na agricultura. Em outubro, foi detido em Díli o diretor da agência de viagens New Generation, por suspeita de estar envolvido. "As agências, que estão ligadas a clubes de apostas de jogos de galo, emprestam 1000/2000 euros para a viagem de avião", refere Alberto Matos.
No segundo semestre de 2022, chegaram a Portugal inúmeros timorenses na "esperança de encontrarem trabalho ou, posteriormente, entrarem no Reino Unido. "Grande parte não conseguiu alcançar estes objetivos, acabando por ficar em situações de extrema vulnerabilidade e com a necessidade urgente de apoio por diversas instituições nacionais de solidariedade social", refere o RASI (Relatório Anual de Segurança Interna).
"Todos foram explorados no pouco tempo que trabalharam (cerca de um mês e, alguns, até dias). Não tinham o mínimo de condições físicas e/ou psicológicas. Os contratos não eram fidedignos ou não existiam e, em alguns casos, faziam horas em excesso. Não foram ressarcidos pelo trabalho efetuado e ainda lhes cobraram entre 150 e 200 euros, segundo nos disseram, para obter o NIF (identificação fiscal) e o NISS (Segurança Social), um direito que assiste a qualquer ser humano e que é gratuito", sublinha Ana Soeiro, responsável pela EACE.
Beja foi a paragem depois de circularem "entre Lisboa (margem esquerda) e o Alentejo. Posteriormente, começaram a dispersar, a ir também para o Algarve e, mais tarde, para o Reino Unido, regressando novamente a Portugal por a sua entrada nesse país não ter sido permitida", acrescenta a assistente social.
Muitos conseguiram trabalho, como Dina Ramos, 25 anos, que chegou a Portugal há nove meses. "Pensávamos que íamos ter tudo aqui e nem trabalho tivemos. A Cáritas [em conjunto com outras estruturas do setor social] encontrou um trabalho para mim e para a minha amiga [Justina Carvalho] em Penalva de Castelo. Vamos cuidar de idosos e ajudar na cozinha."
Promessa cumprida, as duas raparigas começaram a trabalhar no final de março. Também Zeca Soares têm um emprego. Os restantes com quem o DN falou continuam no centro de acolhimento.
"Tentamos perceber o seu percurso de vida, expectativas, potencialidades e fracassos para que se possam integrar em contextos laborais, o que é feito através do programa de intermediação Incorpora. Tem sido um apoio fundamental, na medida em que o acompanhamento é de grande proximidade, o que é essencial para sucesso da integração laboral", conta Ana Soeiro.
O distrito de Beja é referido nos relatórios sobre o tráfico de seres humanos em Portugal como o distrito onde são detetadas mais vítimas. Aconteceu novamente em 2022 com 91 pessoas sinalizadas, oriundos de Marrocos (20), Nepal (15), Índia (14), Argélia (7), Senegal (6), Roménia (6) e Paquistão (5). Leiria regista o segundo maior número, 38 no, maioritariamente do Nepal (23), Índia (5) e Paquistão (3).
A PJ desenvolveu uma das maiores operações contra o tráfico de seres humanos no país a 23 de novembro de 2022 e continua a investigar. Já identificou 350 presumíveis vítimas e foram constituídos 36 arguidos (entre os 22 e 59 anos), 31 dos quais estão em prisão preventiva.
Uma investigação iniciada em janeiro do mesmo ano e que envolveu 400 operacionais para executar mandatos de busca em Beja e Cuba. Os arguidos "integram uma estrutura criminosa dedicada à exploração do trabalho de cidadãos imigrantes, na sua maioria, aliciados nos seus países de origem, tais como, Roménia, Moldávia, Índia, Senegal, Paquistão, Marrocos, Argélia, para trabalhar em explorações agrícolas naquela região. Esta operação contou com várias entidades estatais e não estatais, quer no apoio logístico, quer no encaminhamento das vítimas", referiu então a PJ.
Definição
O crime de tráfico de seres humanos está tipificado no ordenamento jurídico português desde 2007. Artigo 160.º
do Código Penal 1
- Quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extração de órgãos:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos (legislação com base na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional).
Projeto CAIM
Cooperação, Ação, Investigação e Mundivisão, criado para sinalizar vítimas de Tráfico para Exploração Sexual. Implementado em 2004, marca o início da intervenção especializada.
I Plano Nacional
Aprovado em 2007, três anos após o início das conversações sobre como intervir na área do tráfico de seres humanos, especificamente para exploração sexual. Coincidiu com uma alteração ao Código Penal (artigo 169.º) e que cria o crime de tráfico de seres humanos. Está em linha com a Convenção do Conselho da Europa, que Portugal assinou em 2005 e retificou em 2008. O IV Plano (2019-2121) terminou há mais de um ano ainda não foi publicado o V (2022-2025). Houve a discussão pública.
Observatório
O Observatório do Tráfico de Seres Humanos foi criado em 2008 no âmbito do projeto piloto CAIM (órgãos estatais, intergovernamentais e ONG"s, como a OIM). Os relatórios mostram que há uma larga maioria de vítimas, ou potenciais vítimas, para exploração laboral.
Rede Nacional
A Rede Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos é iniciada em 2008/2009. Em 2009 é adaptado o manual para o sistema de diferenciação das vítimas. É criado o primeiro centro de acolhimento (norte), para mulheres e os filhos.
Investigação
Compete ao SEF (Unidade Antitráfico de Pessoas) e à PJ (Unidade Nacional Contra o Terrorismo) investigar o crime de tráfico humano. A PSP e GNR têm competência para sinalizar, tal como as organizações não governamentais (ONG"S) e outras entidades.
Perfil das vítimas
As sinalizadas em 2022, no Relatório Anual de Segurança Interna, continuam a ser maioritariamente do sexo masculino, com uma média de idades de 32 anos. Trabalham em campanhas sazonais, como a apanha da azeitona, castanha, frutos ou outros produtos agrícolas. São levadas para as explorações agrícolas, onde muitas passam a trabalhar e a residir, dependendo totalmente da vontade do empregador (uma empresa intermediária). Estão numa grande vulnerabilidade.
Nacionalidades
Maioritariamente da Ásia (100): Nepal (40), Índia (29); África (48): Marrocos (22), Argélia (10) e América do Sul (31): Brasil (21). Da UE foram sinalizados cidadãos da Roménia (22) e de Portugal (9).A partir de julho começaram a chegar inúmeros timorenses.
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