Portugal Amordaçado. Um "novo fôlego" na denúncia à ditadura

Esta quinta-feira, é relançado o livro mais importante de Mário Soares. O seu filho, João Soares, e o coordenador da obra, José Manuel dos Santos, explicaram ao DN o olhar inédito sobre este grande "depoimento" contra o fascismo.
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"Portugal Amordaçado é não só o mais importante dos livros de Mário Soares, mas é também, indiscutivelmente, um dos mais, se não mesmo o mais, importante livro que é a memória da história do combate contra a ditadura feito por um combatente", explica ao DN João Soares, filho do autor, sublinhando o caráter autobiográfico desta obra que chegou pela primeira vez aos escaparates, em França, em 1972, antes do 25 de Abril.

Com um subtítulo que não deixa margem para dúvidas - Depoimento sobre os anos do fascismo - Portugal Amordaçado -, editado em Portugal pela primeira vez em outubro de 1974, já em democracia, acrescentou alguns detalhes às memórias publicadas em França pelo opositor da ditadura, um combatente exilado pelo Estado Novo, que nunca se conformou.

"Ele começa a escrever o livro e a ideia nasce, para ele, a partir da deportação para São Tomé", lembra João Soares, que na altura, em 1971, deveria ter 19 ou 20 anos. "A minha irmã e eu fomos, com a minha mãe, lá visitá-lo e essa ideia começou ali", em São Tomé, resume João Soares, numa viagem à génese deste testemunho. "Ali, as condições logísticas e de segurança para escrever o que quer que fosse eram relativamente reduzidas. Ele também tinha atenção a esses aspetos Depois, quando ele voltou, a seguir à fraude eleitoral de Marcello Caetano, em 1969, foi ao Brasil e foi aos Estados Unidos. Aí, começou uma grande campanha contra ele, por ter denunciado a Guerra Colonial, e acabou por ficar em Itália, em casa de um grande amigo, que era o Mário Ruivo, um técnico internacional da FAO [Organização para a Alimentação e Agricultura, das Nações Unidas], que tinha sido preso com ele cá e cedeu-lhe uma casa que ele tinha nos arredores de Roma", continua.

"Depois, ele veio para o funeral do meu avô, e eles deixaram-no estar dois ou três dias e depois chamaram-no e disseram-lhe que sai ou prendem-no. Então, decidiu sair. A minha irmã e eu e a minha mãe saímos com ele de carro. E ele decidiu sair por duas razões, muitas fundamentais: queria fundar o PS e queria acabar o Portugal Amordaçado. E foi isso que ele foi fazer. Passou os anos que seguiram, entre outras coisas, com dois grandes objetivos, fundar o PS, [que ] fundou; e escrever o Portugal Amordaçado, que saiu em 72", recorda João Soares.

Sobre a reflexão perante a atualidade, que a obra impõe, João Soares transporta o essencial para a contemporaneidade. "Eu acho que continua a ser um livro extremamente interessante. Há muitas reflexões e muitas histórias que, em alguma medida, são também atuais, embora as coisas não se repitam nunca exatamente como foram. E não creio que haja nenhum risco de voltar a haver uma ditadura parecida com aquela que vivemos durante 48 anos."

Amanhã, no dia em que se celebra o 99.º aniversário de Mário Soares, a Imprensa Nacional lança um edição revista, ampliada e necessariamente atualizada de Portugal Amordaçado. Ao DN, José Manuel dos Santos, coordenador da obra e membro do conselho-geral da Fundação Mário Soares e Maria Barroso, revela o que ainda há para descobrir neste depoimento. Sobre a edição francesa, José Manuel dos Santos revela que "na altura, o editor francês, Alain Oulman, também conhecido por ser o compositor de Amália Rodrigues, insistiu com Mário Soares para que ele não publicasse um livro tão grande - era mais interessante, em França, uma versão mais condensada, em que não precisava ter alguns acontecimentos que só os portugueses conheciam bem. Em França o que interessava era o essencial da mensagem, era a denúncia da ditadura", destaca.

Agora, nesta nova abordagem, de acordo com a explicação do coordenador, a obra estará dividia em dois tomos. No primeiro volume, para além das versões portuguesa e francesa e de um editorial de José Manuel dos Santos, diz o próprio, "tem um texto do Fernando Rosas [historiador e fundador do Bloco de Esquerda], que é um ensaio que contextualiza e chama a atenção para a importância do Portugal Amordaçado, que considera ser um prefácio ao Portugal democrático, por o qual o seu autor tanto se bateu".

No segundo volume "estão os textos, prefácios e outros documentos que as várias edições do livro tiveram, em Portugal e no estrangeiro", acrescenta o coordenador, explicando: "O livro foi editado em oito línguas, tem algumas dedicatórias, que Mário Soares, na edição francesa, dedicou a algumas pessoas. Depois temos mais de uma centena de cartas inéditas, que estão no arquivo".

O que esta edição faz é ir ao encontro de uma revisão que nunca tinha sido feita pelo autor. Mário Soares "pensou, até ao fim da vida, reeditá-lo com notas de atualização e dizendo algumas coisas que não podia ter dito naquela altura, mas acabou por ser solicitado por milhares de coisas e nunca fez isso", revela José Manuel dos Santos.

Questionado sobre se Mário Soares, que morreu em 2017, sentiria que a democracia que idealizou estaria concretizada na atualidade, o coordenador da obra diz ter dúvidas. "Acho que ele, nos últimos anos, estava profundamente desiludido, não com a democracia, em particular, não com a portuguesa, mas com as democracias. Achava que tinham sido capturadas por um sistema político-económico que se chama neoliberalismo, e que isso ia ter consequências dramáticas. Ele, nos últimos anos, nomeadamente no DN, escreveu imensos artigos e chamava a atenção para este sistema que, ao excluir as pessoas, ao ser fundado na desigualdade, provoca coisas terríveis, como o crescimento da extrema-direita."

vitor.cordeiro@dn.pt

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