"Porcaria" ou "parabéns". Nomeação para os Óscares expõe divisão no Brasil

Opção da Academia de Hollywood por "Democracia Em Vertigem", documentário centrado no processo de <em>impeachment </em>de Dilma Rousseff bate recordes de comentários positivos e negativos nas redes sociais. Para Bolsonaro é "ficção", para Lula "narrativa importante".
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"A denúncia do golpe nos Óscares. O filme mostra o meu afastamento do poder e como a media venal e as elites política e económica brasileiras atentaram contra a democracia no país, resultando na ascensão de um candidato da extrema-direita em 2018", escreveu a antiga presidente Dilma Rousseff, do PT, ao saber que "Democracia em Vertigem", da brasileira Petra Costa, havia sido nomeado na segunda-feira para o Óscar de melhor documentário pela Academia de Hollywood.

Na manhã seguinte, Jair Bolsonaro respondeu que "é ficção...". "Para quem gosta do que o urubu come [carne podre], é um bom filme", ironizou, antes de admitir nem o ter visto: "Mas eu lá vou perder tempo com uma porcaria dessas?". "Democracia Em Vertigem" também mereceu reação irónica do PSDB, o partido que antecedeu o PT no poder através de Fernando Henrique Cardoso: "Parabéns pela indicação para o Óscar de melhor fantasia".

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o candidato do partido derrotado por Bolsonaro nas últimas eleições, Fernando Haddad, e Lula da Silva comentaram, com elogios: "Parabéns Petra Costa pela seriedade com que narrou esse importante período da nossa história. Viva o cinema nacional. A verdade vencerá!", reagiu o antigo presidente.

Para o pastor evangélico Marco Feliciano, deputado próximo do Palácio do Planalto, "a mera indicação é um acinte ao povo brasileiro". "O filme é mentiroso e financiado por um braço da empreiteira Andrade Gutierrez, envolvida no Petrolão. Aliás, por que a esquerda vibra com um prémio que é símbolo do capitalismo yankee?", perguntou-se.

Talíria Petrone, do esquerdista PSOL, considerada a herdeira política da vereadora executada Marielle Franco, festejou. "O mundo inteiro vai poder conhecer o processo de golpe que abriu caminho para a serpente do fascismo representada por Bolsonaro e seus cúmplices".

De entre os protagonistas do impeachment de Dilma, em 2016, quase toda a gente opinou com veemência. As exceções foram Michel Temer, que herdaria a presidência, e Janaína Paschoal, a subscritora da peça jurídica que pedia a destituição da militante do PT. "Não vi, não posso opinar", responderam ambos ao jornal Folha de S. Paulo.

Marcelo Calero, que foi Ministro da Cultura do governo Temer, de onde sairia em rutura, acusando colegas de executivo de corrupção, foi uma das raras vozes de consenso. "É bom que um filme brasileiro esteja nos Óscares. Não é preciso concordar com ele. Eu mesmo não concordo com a versão dos factos".

Apenas quatro horas depois de ter sido anunciado, o documentário já havia recebido 120 mil menções na rede social Twitter. No Facebook, foram 1200 links com mais de 712 mil reações, comentários e partilhas. Desses comentários, aponta levantamento da Diretoria de Análise de políticas Públicas da Faculdade Getúlio Vargas, 14% fizeram referência a "Dilma", 12% a "golpe", 6% a "ficção" e 5% a "comunista".

Na imprensa, colunistas também se dividiram em comentários positivos e negativos à nomeação. "Vou torcer contra o Brasil nos Óscares", titulava a coluna de David Coimbra no jornal Zero Hora, de Porto Alegre.

"Não porque "Democracia em Vertigem" iluda o espetador quanto à forma. Pelo contrário, o filme é bastante sincero, assumida e devotamente pró-PT. Disfarçadamente, porém, não passa de uma peça publicitária do partido e de bajulação a Lula. Sua realizadora, Petra Costa, é "petista-raiz", o que fica claro no enredo, que conta a história da relação da família dela com o partido. E, não por acaso, a família em questão chama-se Andrade Gutierrez, que tanto se revigorou no dinheiro do contribuinte brasileiro nos governos petistas".

"O documentário é de uma desonestidade assombrosa. A começar pelo título. A democracia brasileira não está em processo de queda. Ao contrário: nunca esteve tão forte. Tanto que mesmo um presidente antidemocrático, truculento e grosseiro, como Bolsonaro, tem de se submeter a ela", conclui o jornalista.

Ranier Bragon, articulista do Folha de S. Paulo, concede que "o documentário tem ingenuidades e alguns delírios esquerdistas, como o de sempre culpar a imprensa pelos males do mundo". "Apesar disso, tem muita qualidade técnica, registos históricos de bastidor e, talvez o maior mérito, foge da comum armadilha de forjar equilíbrio onde há tudo menos equilíbrio. O filme tem lado e pode ser o mais condizente com a história toda".

Ouvida pela imprensa brasileira, a autora disse que ela e a equipa estão "absolutamente extasiados por nossos colegas terem reconhecido a urgência deste filme". "Numa época em que a extrema direita está se espalhando como uma epidemia, esperamos que este filme possa nos ajudar a entender como é crucial proteger as nossas democracias".

No quarto documentário da sua carreira, Petra Costa, 36 anos, mistura a narrativa do processo de impeachment de Dilma, conduzido pelo então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, com detalhes da sua vida pessoal, como a de ser herdeira de uma construtora envolvida na Lava-Jato, a Andrade Gutierrez, e filha de dois opositores da ditadura militar brasileira (1964-1985).

Acusada de praticar pedaladas fiscais (manobras orçamentais), Dilma foi destituída da presidência após votações nesse sentido na Câmara dos Deputados e no Senado Federal ao longo de 2016 e substituída, conforme a constituição, por Temer. Após o seu mandato de cerca de dois anos, Temer deu lugar a Jair Bolsonaro, eleito, em outubro de 2018, presidente da República.

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