Por uma possibilidade maior
Um dia mereceremos que não haja governos, dizia Borges, que não era anarquista. Era um conservador, porque ser conservador, dizia ele, era a melhor forma de evitar os fanatismos.
Pode ser uma forma, não me parece que seja a melhor. A melhor é ser democrático.
O nacionalismo é um fanatismo, dizia o mesmo Borges, "só permite afirmações, e toda a doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez".
A democracia por ser imperfeita é perfeita. Só é plena se estiver permanentemente a procurar ser melhor. Ser melhor significa não ser só governada pelo voto da maioria, mas sobretudo ser governada pelo conjunto dos votos da maioria e das minorias. E ser governada por diversos governos: do país, dos conselhos, das cidades - e dos acordos internacionais, das uniões de países. Paradoxalmente, quanto mais instituições democráticas regularem as nossas comunidades a diferentes níveis, mais hipóteses temos de que uma só delas não interfira demasiado na nossa liberdade individual.
Somos cidadãos dos países, mas também das cidades ou das aldeias. Estes são tanto os nossos sítios de origem como aqueles em que escolhemos viver ou aqueles onde transitoriamente podemos estar.
Talvez um dia possamos merecer que não haja governos, mas amanhã não é a véspera desse dia, como diria o chefe da aldeia de Astérix a propósito da possibilidade de o céu lhes cair na cabeça, a única coisa de que os resistentes gauleses tinham medo.
Os gauleses resistiam ao invasor romano com a poção mágica que lhes dava uma força sobrenatural. A popular banda desenhada pode ser lida como uma divertida parábola da invasão do império americano do século XX à patriota exceção francesa.
Hoje rimo-nos como antes com as aventuras de Astérix e os seus companheiros e com a bonomia implacável com que o génio de Goscinny desmontava a burguesia francesa e os costumes do seu tempo. Mas a parábola não se aplica mais à nossa época.
Já os Monty Python tinham denunciado no filme A Vida de Brian que os romanos - além das estradas e dos aquedutos e das leis e da língua e da paz - não fizeram nada pelos povos que conquistaram.
Hoje os fanáticos ganham força nas principais democracias do planeta e defendem um regresso aos nacionalismos e à conceção dos países como aldeias muradas contra inimigos - que não são nem invasores nem evidentes.
Na aldeia global em que todos vivemos, os irredutíveis gauleses não se reduzem a uma aldeia e a poção mágica que lhes poderá dar a força para resistir agora e sempre ao invasor é a inteligência para perceberem, antes de mais, que o invasor não está no exterior mas sim no interior das suas, nossas, democracias. Esse invasor está a ganhar força a partir do medo que a desigualdade crescente das nossas sociedades está a fazer crescer e a transformar em populismo e em formas contemporâneas de fascismo.
"Imagina que não há países", cantava John Lennon, "Não é difícil de fazer./ Nada pelo qual matar ou morrer,/ E nenhuma religião também." Talvez um dia o possamos merecer.
Mas enquanto não formos merecedores de sermos todos cidadãos do mundo em paz e liberdade, há um caminho de exclusão, luta, delimitação, negociação, acordo, partilha. Quando tudo corre mal nesse caminho, há opressão ou guerra. Quando corre melhor, há luta política, ação política, democracia.
A poção mágica para o nosso tempo é a inteligência política, o elogio da política como atividade nobre ao serviço da causa pública, do bem comum da pólis. A ação política hoje não pode estreitar-se dentro dos estúpidos muros reais ou imaginários de um país.
O que define um território são as suas fronteiras, a sua relação com o que o limita. Um território político pode ser definido pelo que não inclui, mas o que não inclui não deve ser o que exclui, antes o que com ele estabelece relação.
O nosso território hoje é Portugal, é o mundo e é o mundo que escolhemos: o nosso bairro, a nossa aldeia, a nossa cidade, donde vimos, para onde vamos, onde queremos ir, a nossa relação com o mar, com a nossa língua, com o passado, com o futuro, com a América, com África, com a Ásia, com o nosso centro e a nossa periferia, com o que nos une e com o que nos separa, o que nos distancia e o que nos é vizinho.
Todos esses espaços que se sobrepõem, se somam e nos acrescentam e enriquecem são os territórios onde devemos atuar politicamente, cidadãos locais e globais.
De todos esses mundos onde devemos atuar politicamente há um que deve ser a nossa prioridade. Mais do que uma união económica ou administrativa, tem o desenho de uma união maior do que os países que o compõem, mas o seu projeto de união política democrática está muito incompleto e precisamos de agir com urgência para o defender dos seus inimigos.
É, muito mais que um continente, uma ideia, uma possibilidade maior, o seu nome é Europa.