Por todos os países do mundo

Mala de viagem (fim)
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Em 193 dias, de 8 de agosto de 2022 até 16 de fevereiro passado, ininterruptamente, registei na edição digital do Diário de Notícias as minhas histórias de outros tantos países e itinerários pelo mundo, num ensaio de memória através de fragmentos de viagens realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas e entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho.

Fiz-me às viagens pelo círculo completo do planeta porque, ao contrário do que se diz, os quatro cantos do mundo só se podem definir pelos cantos musicais, por exemplo, e não por uma forma poligonal. A Terra é esférica, tal como a bola que vi ser jogada num campo com uma árvore no meio e que representa a defesa do património no seu limite mais inimaginável. Comecei voando por cima de um cemitério de impérios. Ouvi cantos polifónicos e também o suspiro de gente só - "Não me esqueça!", foi o apelo num dos países. Senti tristezas e alegrias, e mesmo sorrisos de onde seria supor ver lágrimas. Vi gente rica e gente pobre, belezas esculturais e belezas feridas - e árvores que querem "voar" com os pássaros. Pisei terra fértil e outra por moldar. Falei com políticos, empresários, escritores, artistas, defensores de causas, modelos de moda, migrantes e gente anónima. Registei cidades, visitei museus e comi à mesa de gente que dá um sorriso sem que esteja à espera de alguma coisa. Plantei acácias de fraternidade. Deixei desenhos, poemas e afetos. E regressei sempre ao mesmo lugar, de onde em todos estes cinco séculos partiram à descoberta tantos portugueses em viagens de peregrinação, em viagens de comércio, em viagens de expansão política, de fé e científica, em viagens eruditas, de formação e de serviço, em viagens de exílio ou emigração e, por fim, em viagens imaginárias e de ficção.

No regresso à vida quotidiana, associa-se uma espécie de rito de passagem, em que se compartilham imagens mentais, fotografadas, escritas ou desenhadas da experiência vivida, que muitas vezes trazem consigo objetos oriundos do destino visitado. Um diário pode ser também um excelente auxiliar para perpetuar memórias de um tempo que não é, necessariamente, para nada fazer, nem de intenso desassossego. É sempre uma oportunidade de descontrair e um tempo para recuperar o fôlego e um maior alheamento em relação aos aparelhos da vida moderna.

No meu périplo pelo mundo, porém, não procurei nem descobri apenas paraísos, mas eles ainda existem por todo o lado. A natureza é um ótimo lugar para começar a cultivar a essência do silêncio, seja em locais exóticos ou mais próximos de nós, seja numa floresta ou num espaço verde urbano, e seja no mar, nas montanhas ou nos desertos. O silêncio é cada vez mais raro, mas tão essencial, mas também o movimento das ruas alimenta a alma.

Nestas viagens e nestas histórias senti-me como um cidadão viajante que carrega o mundo inteiro dentro de uma mala de viagem.

Porém, o mundo é ingrato, se bem que tão belo. Todos merecemos um refúgio para depois da rotina diária, em hotéis deslumbrantes à beira-mar, nem que seja apenas por um fim de semana. O mundo está cheio desses locais mágicos, mas eles continuam a não ser para todos. Eu fui ao encontro do imaginado e nem sempre encontrei o ideário. Longo percurso, por vezes arriscado, outras vezes inundado de sol, abrigos seguros, águas frescas e uma estrela para me guiar, onde havia sempre luz esperando por mim. As histórias dizem-nos que o mundo melhor e mais feliz está sempre ao nosso alcance, noutro tempo ou noutro local, num passado há muito perdido ou no futuro, num planeta distante ou numa Terra feliz.

Concluo, tal como terminei a série: "Não há viagem sem utopia." E sem horizonte, pois, por mais que se caminhe, jamais o alcançaremos. Por isso não deixei de caminhar na memória e na imaginação em procura incessante. A utopia serve para imaginar mundos e para os conhecer de diferentes modos. Depois, a prosa e a poesia atuam como estrelas inspiradoras e reveladoras de mistérios, de enriquecimento pela sabedoria provida de outros povos e, enfim, de liberdade, solidariedade e fraternidade. Nestas viagens, eu procurei o não-lugar da utopia, porque muitas vezes sinto que o lugar de que sempre parto é o lugar vazio que já pouco me diz. As palavras são como as pessoas. Nascem, mudam de rosto, envelhecem e morrem. E os idiomas são fronteiras fechadas, onde apenas uma língua se tornou no esperanto da contemporaneidade, com o perigo de muitas outras desaparecerem. Nós realizamo-nos e construímo-nos através de trocas com os outros e com a realidade envolvente e de sermos visitados por outras sensibilidades. E que bonito é conseguirmo-nos entender cada qual na sua língua. Tudo isto são instrumentos para sermos felizes. O segredo é estar disponível para que outras lógicas nos visitem, ou para nos aproximarmos delas em viagem, que é sempre um ensinamento. Em viagem, confirmamos que, na natureza com animais e vegetais, todos os conhecimentos estão interligados, mas nós, seres supostamente (mais) inteligentes, reduzimos o conhecimento, impedimos a compreensão dos problemas do mundo e não promovemos a transdisciplinaridade e a visão das coisas com as emoções. Do Afeganistão ao Zimbabwe, espero ter conseguido passar a diversidade do planeta, que, por agora, é o único visitável." (Jorge Mangorrinha, "Mala de Viagem: Zimbabwe. Victoria Falls, um hotel com cataratas à vista", 193, Diário de Notícias, 16 de fevereiro de 2023.)

Entre o sonho e a realidade, entre a imaginação e o facto, surgiu a escrita, que talvez se integre numa literatura de viagens, subgénero compósito e interdisciplinar da literatura para o qual confluem diferentes saberes para as prosas, a poesia e as mensagens intrínsecas. As histórias são o modo de registar a nossa experiência do mundo, de nós próprios e dos outros, de dizermos algo mais para além dos seus protagonistas e enredos. O escritor é tanto ou mais perspicaz no seu olhar e nas suas escolhas quanto mais for multifacetado nas suas experiências formativas e de vida. Eu espero que, por tudo isto, estas histórias sejam um contributo para a literatura de viagens, sempre em evolução.


Escritor de viagens

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