Todos os dias as notícias dão conta da falta de ginecologistas e obstetras de norte a sul do país. E até em Lisboa houve o risco de as urgências das maternidades serem obrigadas de encerrar rotativamente no verão. Perante este cenário, os lugares disponíveis para esta especialidade no Serviço Nacional de Saúde ficam longe de serem preenchidos na totalidade - das 31 vagas abertas para recém-especialistas, só 14 foram preenchidas, segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde, divulgados nesta terça-feira..As razões apontadas para esta realidade são principalmente três: se por um lado os novos especialistas preferem trabalhar nos grupos de saúde privados em que ganham bastante mais do que no Serviço Nacional de Saúde (SNS), por outro não têm de mudar a sua vida para irem trabalhar em hospitais do interior. A isto, junta-se o facto de terem uma vida profissional menos stressante, já que fazem menos partos de risco..A questão levantada por Alexandre Valentim Lourenço, da secção regional do sul da Ordem dos Médicos, traz a resposta agregada: "Por que razão vão mudar de uma região para a outra, a receberem o que recebiam antes, se na medicina privada ganham o dobro?"."Antes da concorrência dos privados, quando abriam vagas para especialistas, que remédio tinham senão ir para longe. Mas agora querem ficar na região onde fazem os internatos e onde ganham mais", diz, por seu turno, Luís Graça, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal..O facto de 55% das vagas para ginecologia-obstetrícia terem ficado por preencher ganha ainda mais relevância numa altura em que, por falta de especialistas, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo ponderou avançar com um sistema rotativo de funcionamento durante o verão nas urgências da Maternidade Alfredo da Costa, Hospital de Santa Maria, São Francisco de Xavier, Amadora-Sintra e Hospital Garcia de Orta. A medida acabou, contudo, por não avançar..Mas se em julho o governo fez um balanço positivo do atendimento às grávidas na capital, já no início de agosto a Ordem dos Médicos avisou que as maternidades do país estão no limite, com os profissionais a fazerem um esforço sobre-humano e a cumprirem num mês mais de cem horas nas urgências para além do normal..Prematuros e grávidas de risco vão para o público.Não são apenas os valores dos ordenados que explicam a atração dos recém-especialistas pelos grupos de saúde privados, em que a especialidade de ginecologia-obstetrícia tem vindo a ganhar relevo, com a realização de cada vez mais partos - cerca de oito mil por ano, só na região de Lisboa. Alexandre Valentim Lourenço fala também do trabalho "menos arriscado" que os obstetras realizam nos privados. "Os grupos privados têm muitas maternidades, mas não fazem consultas de alto risco. Os bebés muito prematuros e as grávidas de grande risco vão para hospitais públicos, mais apetrechados e com cuidados intensivos.".Exemplifica com uma gravidez gemelar de 24 semanas, cujos bebés podem nascer com 500/600 gramas e necessitam de estar internados na neonatologia durante dois ou três meses. Ora, os seguros de saúde pagam apenas alguns dias de internamento - uma questão que também é referida por Luís Graça..A prova de que os privados estão cada vez mais atrativos é que até os hospitais de referência, como Santa Maria e a Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, têm faltas destes especialistas - "abrem quatro, cinco vagas extraconcurso e as pessoas não aparecem", diz o dirigente da Ordem..Ordenados mais elevados, manterem-se nas grandes cidades, uma vida mais tranquila e menos stressante do ponto de vista profissional e o facto de não terem de fazer uma ou duas urgências por semana como acontece no público - o leque é demasiado aliciante para afastar os médicos especialista do Serviço Nacional de Saúde (SNS)..Luís Graça deixa, contudo, um alerta. "Saindo do SNS, os recém-especialistas não vão aprender mais nada para o resto da vida. Até podem ter a ilusão de que vão estudar, de que vão aprender por si próprios...".A multiplicação dos grupos de saúde privados caminha lado a lado com a diminuição do número de consultórios privados. Alexandre Valentim Lourenço, também médico da especialidade, estima que nos últimos dez anos tenham reduzido para metade. O resultado disso, frisa, é que se até aqui nas especialidades de obstetrícia e pediatria havia uma relação médico-paciente muito próxima, agora transformou-se numa relação entre uma pessoa e uma instituição..Ficar no SNS para pagar a especialidade.A falta de especialistas em ginecologia-obstetrícia revela-se não só pelos salários mais baixos praticados no setor público: muitas vezes quando os lugares abertos são preenchidos, os outros especialistas já lá não estão. "Está-se a fazer uma transfusão de sangue num braço, quando se tem uma hemorragia no outro", ilustra o dirigente da Ordem dos Médicos..Alexandre Valentim Lourenço defende, por essa razão, que os concursos no Estado devem reger-se de outra forma, não podendo levar oito meses quando no privado levam oito dias..Luís Graça tem uma proposta mais radical: que depois de terminada a especialidade, os médicos sejam obrigados a trabalhar três ou quatro anos no Serviço Nacional de Saúde. "A especialidade custa milhares de euros ao erário público, é verdade que também é em troca de trabalho, mas seria uma forma de compensar o Estado", justifica..Na entrevista que a ministra da Saúde, Marta Temido, deu ao DN e à TSF em dezembro do ano passado, já defendia que os médicos teriam de ficar mais tempo no SNS para pagar a formação: "Nunca poderíamos pensar numa opção de imposição. Uma opção será a de, após a sua formação, as pessoas ficarem vinculadas durante um período, que nunca poderá ser muito longo, e depois haverá a opção pela dedicação exclusiva, voluntária", disse..Todos os anos se formam 35 a 40 especialistas em ginecologia-obstetrícia. A questão é que querem ficar nos grandes hospitais e recusam ir para Portalegre ou Santarém, exemplifica. "Estes hospitais têm depois de recorrer aos serviços de mercenários que andam a saltitar de um lado para o outro. Isto não é medicina como a entendo", afirma Luís Graça..Por isso, tem uma solução: que os médicos sejam atraídos para o interior com salários substancialmente mais elevados e com casas mobiladas..A estes estímulos defendidos por Luís Graça, Alexandre Valentim Lourenço acrescenta uma maior racionalidade na abertura das vagas. E dá o exemplo do Hospital do Litoral Alentejano, em Santiago do Cacém, onde já abriram três lugares sem que disponha da especialidade de obstetrícia..A isso acresce o facto de as vagas que abrem não se enquadrarem com as necessidades dos hospitais e o trabalho que o médico está mais apto para realizar. Ou seja, uma unidade de saúde precisa de um clínico para fazer ecografias, mas a pessoa que concorre faz cirurgia obstétrica..Todos os dias novos casos de falta de médicos.As notícias sobre os problemas nas maternidades multiplicam-se. Ainda na segunda-feira, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) exigiu ao governo que resolva a falta de obstetras nas maternidades de Coimbra..A não atribuição de vagas suficientes de obstetras tem consequências inevitáveis para o funcionamento eficaz e eficiente do serviço e irá causar prejuízos às grávidas da região centro", disse o sindicato num comunicado..Também nesta terça-feira, o Centro Hospitalar e Universitário do Algarve veio dizer que está com dificuldades em preencher as escalas noturnas na urgência de neonatologia, a partir de setembro, devido ao número elevado de médicos que estão de baixa. Ora, se a neonatologia encerrar, também não poderão realizar-se partos..O Algarve tem sido, aliás, uma região bastante afetada pela falta de ginecologistas-obstetras. No Hospital de Portimão, por exemplo, desde junho que o serviço tem sofrido algumas interrupções por não haver especialistas que assegurem as escalas aos fins de semana..vagas Infogram.350 lugares ficaram vazios.Ao todo, mais de 350 vagas para recém-especialistas ficaram por preencher. Tratou-se da primeira época do concurso que disponibilizou 1264 lugares - foram colocados 909 médicos..Quer isto dizer que 72% dos postos de trabalho ficaram ocupados. Em outubro-novembro, será aberto novo concurso para os internos que atrasaram a especialidade, mas é certo que haverá menos vagas..Medicina geral e familiar foi a especialidade que mais lugares abriu - 398, das quais foram ocupadas 305. Seguiu-se medicina interna com 159 lugares (111 deles com candidatos) e cirurgia geral com 63 vagas, 54 delas preenchidas.