Por que a oposição a Bolsonaro não faz nascer uma geringonça?
"E agora? Agora vou para Paris de férias".
A frase de Ciro Gomes, dita horas depois de conhecidos os resultados da primeira volta das presidenciais de 2018, ainda ecoa, em 2020, no Brasil. Com ela, o candidato de esquerda do PDT, que acabara de receber mais de 13 milhões de votos, dizia no fundo que tanto lhe fazia que na segunda volta ganhasse Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita do PSL, ou o seu ex-colega de governo e amigo pessoal Fernando Haddad, do também esquerdista PT.
Foi um momento sintomático da desunião das esquerdas brasileiras que, mesmo em época de governo radical à direita como o atual, impede a criação de uma frente ampla ou, para usar termo português, uma "geringonça tropical".
Na última semana, três exemplos dessa desunião: no Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, deputado federal do PSOL, desistiu de concorrer à prefeitura da cidade nas municipais de outubro depois de verificar que nem no seu partido, uma espécie de Bloco de Esquerda, há consenso.
O também deputado federal David Miranda, conhecido, além da sua atividade política, por ser marido do jornalista norte-americano Glenn Greenwald, fundador dos sites The Intercept e The Intercept Brasil, deve avançar.
Porém, Freixo, que era o mentor político da vereadora executada Marielle Franco, tinha francas possibilidades de chegar longe - em 2016, conseguiu disputar a segunda volta e perdeu para Marcelo Crivella, bispo evangélico e sobrinho de Edir Macedo, que deve ter apoio de Bolsonaro na tentativa de reeleição.
Em São Paulo, o PT escolheu como candidato à prefeitura Jilmar Tatto, um quadro relevante dentro do partido mas sem apelo fora dele e, portanto, fadado ao fracasso eleitoral.
Na maior cidade do país, a esquerda deve, portanto, concorrer fragmentada - além de Tatto, avançam Orlando Silva, ex-ministro de Dilma Rousseff, pelo PCdoB, Guilherme Boulos, candidato presidencial há dois anos, pelo PSOL, Márcio França, que foi governador do estado, pelo PSB, e não só.
Noutro universo, o da internet, o youtuber Felipe Neto, que acumula 9,8 mil milhões de visualizações aos seus vídeos, sobretudo de crianças e adolescentes, tem-se revelado um opositor ferrenho do governo - a meio do processo pediu até à mãe, portuguesa, para voltar a Portugal por temer pela segurança da família.
No entanto, por ser olhado pela "intelligentsia progressista" como pueril pela sua idade - 32 anos - e, sobretudo, pela sua atividade online e, ainda, por ter defendido o impeachment de Dilma - posição pela qual mostra hoje arrependimento - em vez de aplausos recebe sobretudo vaias de uma esquerda mais dada a afastar do que a acolher.
Mesmo podendo ser a ponte para um novo eleitorado a que os políticos comuns não chegam.
Sobre o tema, Fernanda Sarkis, especialista em comunicação política e investigadora na Universidade do Porto, afirma ao DN que "o clima no Brasil de hoje não permite nenhum debate e sem debate não há geringonça".
"No chamado campo progressista, há sentimentos e perceções de toda a natureza, principalmente personalistas, uns acreditam que Lula da Silva é uma figura centralizadora que busca a hegemonia de seu partido, outros entendem que ele personifica um projeto de desenvolvimento para o país, o que dá sentido a frase proferida no seu último discurso antes de ir para a prisão 'Lula é uma ideia', entretanto, só esse tipo de discussão que não consegue se encontrar minimamente no objeto do debate, impede o debate por si".
"Afinal, a geringonça formou-se em torno de um projeto de governo e não na figura de António Costa", remata.
"Desde o Mensalão [escândalo de corrupção no primeiro governo Lula], quando um grupo saiu do PT e formou o PSOL, há rivalidades na esquerda, aliás, até 2014, as maiores críticas ao PT vinham da esquerda e desse movimento criou-se ainda outro partido, o Rede, da Marina Silva, ex-ministra de Lula", recorda ao DN o cientista social e colunista de Yahoo e UOL Matheus Pichonelli.
"Ciro Gomes [outro ex-ministro de Lula], por sua vez, é talvez o maior crítico do lulismo", sublinha, voltando ao personagem do início do texto.
"No Brasil é muito difícil falar em hegemonia e, depois, os partidos são todos costelas uns dos outros, Rede e PSOL eram costelas do PT, o PSDB era costela do MDB, agora até o futuro partido do Bolsonaro, o Aliança, é costela do PSL, ou seja, a política brasileira é feita de dissidências e assim é difícil que se juntem e conversem", prossegue.
Mesmo numa era atípica, como é o bolsonarismo.
"Por um lado, as coisas ficaram tão esgarçadas com Bolsonaro, que o campo progressista ficou muito alargado, com gente até há pouco considerada de direita e conservadora, como Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin, José Serra [todos do PSDB], mais próxima hoje da esquerda do que do radicalismo bolsonarista, mas, por outro, essa ampliação não gera consensos eleitorais, PT e PSDB não se unem contra o bolsonarismo porque há uma barreira intransponível entre eles que é o impeachment de Dilma Rousseff [o PSDB, ao lado de Michel Temer, apoiou a deposição da presidente]".
O cientista político Vinícius Vieira explica ao DN, entretanto, como foi a formação da esquerda brasileira: "Muitas das lideranças de esquerda, antes de ecoar o caráter popular, representam oligarquias, como a família Arraes, em Pernambuco - Miguel Arraes, o neto Eduardo Campos e agora o filho dele - ou como a família Gomes, no Ceará - o Ciro e o irmão senador Cid, são de famílias proprietárias de terras. Ou seja, não há propriamente descendentes de escravos ou de brancos pobres".
"Lula foi o único branco pobre a chegar ao poder e mesmo ele não teria sido tão bem sucedido se não tivesse vendido a imagem de "bom selvagem", citando Rousseau, para a intelligentsia uspiana [relativo a USP, a prestigiada Universidade de São Paulo]", continua.
Para o cientista, "além das oligarquias, há na conjuntura de hoje o personalismo e isso gera uma falta de agregação e um prevalecimento das vaidades".
"Por que não temos uma geringonça no Brasil?", pergunta-se Vieira, "porque o país é a própria geringonça, os governos no Brasil, quer em ditadura, quer em democracia, sempre governaram ao centro, porque incluíam, políticas sociais relevantes até na ditadura", assinala por outro lado.
Para Fernanda Sarkis, o primeiro governo Lula, entretanto, já tinha algo de "geringonça". "O primeiro governo de Lula pode ser percebido como uma espécie de "geringonça à brasileira" porque o seu vice-presidente era o bem-sucedido empresário da indústria têxtil José Alencar, do Partido Liberal, o que delimitou a base de apoio ao governo a um espetro que ia de partidos ligados ao sindicalismo até aos liberais".
Já, no entanto, na opinião de Vinícius Vieira, "Dilma governou muito à esquerda com um Congresso muito conservador, talvez fruto da ascensão dos evangélicos".
"Acho que a solução da esquerda está em mover-se ao centro, como faz [o governador do Maranhão pelo PCdoB] Flávio Dino, que se tem reunido com [o apresentador da Globo e liberal] Luciano Huck, e conectar-se aos evangélicos e aos pequenos empresários, que se sentiram abandonados pelo PT, porque neste momento quem tem mais probabilidades de vitória em 2022, além ainda de Bolsonaro, serão [os ex-ministros do atual governo] Sergio Moro e Luiz Henrique Mandetta, ambos de direita".
Opinião semelhante à de Pichonelli: "Quem parece ter fôlego para bater Bolsonaro ou vem do campo conservador, como [o governador de São Paulo ex-aliado de Bolsonaro] João Doria, ou de defeções do próprio bolsonarismo, como Moro".
Para o colunista do portal UOL, os casos falados no início do texto são emblemáticos. "O Marcelo Freixo virou uma grande referência de esquerda mas o PSOL tem uma força eleitoral sem peso ainda e que não conversa com o PT, então ele sabia que ao candidatar-se ia "jogar como nunca e perder como sempre"".
"Por sua vez Tatto é a opção de um partido que não se renova e de um partido que tem a arrogância e a teimosia de querer sempre liderar as candidaturas", diz também.
Essa falta de renovação reflete-se no preconceito contra youtubers. "Os sindicatos, as uniões de estudantes e esses atores de rua têm dificuldade em aceitar atores políticos do mundo virtual, como Felipe Neto, aceita-lo seria aceitar que envelheceram e isso eles não querem, nesse aspeto, a esquerda está a anos-luz da direita".
E embora à direita os conflitos, recentes, entre Bolsonaro e Moro ou entre Doria e Bolsonaro, pareçam incompatíveis, as feridas à esquerda são ainda mais incuráveis. Em dezembro de 2019, numa entrevista ao canal Globonews, Ciro foi perguntado se estava arrependido de ter ido para Paris em vez de apoiar explicitamente Haddad contra Bolsonaro na segunda volta. "Todos os dias eu me celebro por ter tomado aquela decisão que me custou muita angústia. Todos os dias eu me celebro".