Polifonia a uma voz existe, se houver um Carlos Mena

O Festival Terras Sem Sombra levou à Basílica Real de Castro Verde o contratenor espanhol Carlos Mena, com um programa centrado no repertório ibérico dos séculos XVI e XVII.
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A itinerância do Festival Terras Sem Sombra (Baixo Alentejo) levou-nos no sábado à Basílica Real de Castro Verde, para um concerto centrado no repertório polifónico vocal e instrumental da Península Ibérica dos séculos XVI e XVII.Foram intérpretes o contratenor Carlos Mena, acompanhado do vihuelista Juan Carlos Rivera e do organista (e cravista) Carlos García-Bernalt, seus habituais colaboradores na Capilla Santa Maria.

Tratando-se de repertório a várias vozes (a cappella), assistimos portanto a transcrições, em que os instrumentos faziam o restante (extra-Mena) tecido polifónico, segundo uma prática que vem, de resto, já da própria época. Abordar repertório destas características com a voz tão exposta não é empresa fácil, mas Mena mostrou logo no Alma redemptoris mater de Victoria (que abriu o concerto) "ao que vinha": voz de enorme beleza tímbrica e pureza de emissão, intonação "à prova de bala", projeção generosa, capacidade de matizar e "gradar" subtilmente a articulação e as dinâmicas, admirável controle da respiração. Mas também as pureza e justeza da ornamentação, a messa di voce, os arcos expressivos que foi construindo ao longo das peças, as acentuações em palavras/locais-chave, a variedade do colorido dentro da sobriedade requerida por esta música.

Curioso foi o modo como a radicação no cantochão ficou amiúde mais evidente com este molde interpretativo (e o Pange lingua (de Victoria) alternava secções polifónicas/em cantochão); ou o carácter de proto-vilancico religioso do Virgen bendita sin par, de Pedro de Escobar; os jogos texturais de luz/sombra do Ne timeas, Maria (Victoria); a riqueza retórica do motete Domine, tu mihi lavas pedes? (Frei Manuel Cardoso); ou a passagem dos Ad te e a secção final (a partir de Et Jesum) do Salve Regina (Victoria). Estes, alguns dos momentos em que mais brilhou a esplêndida forma vocal de Carlos Mena.

A seu lado, não estiveram menos notáveis Rivera e García-Bernalt, mais claramente assim nas peças a solo em programa: uma Canção de António Carreira (órgão), a Canção do Imperador, de Josquin/Narváez (vihuela) e uma Susana, de Rodrigues Coelho (órgão). Destaquemos a clareza da penetração da natureza (até epocal) das peças (Carreira/R. Coelho) evidenciada pelas leituras de García-Bernalt: eloquência e bom gosto; e a suave melancolia dos Mille regretz nos dedos de Rivera, com alternâncias de relevo tímbrico e subtis jogos de luz e sombra.

Contrariando - e bem! - indicações prévias, o público aplaudiu cada uma destas peças, pois as interpretações foram nos três casos merecedoras dessa distinção.

Uma palavra final para a iluminação do palco: um excelente trabalho de Pedro Martins.

Próxima paragem do Terras Sem Sombra é Moura, onde a 6 de junho se ouvirão cantos do sul de Itália.

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