Poesia liberdade livre
"Je m"entête affreusement à adorer
la liberté libre" (Rimbaud)
A convite da Fundação Mário Soares, tive o prazer de participar numa conversa sobre poesia e liberdade com os poetas António Carlos Cortez e André Osório, moderados pelo também poeta Jorge Reis-Sá.
Permito-me reproduzir aqui parte do que disse naquela ocasião.
A poesia é afirmação plena da liberdade por sobre todas as formas de negação da vida e da criação que nos envolvem e oprimem. Como diz Cesariny:
enquanto um só homem um só que seja
e ainda que seja o último existir
DESFIGURADO não haverá Figura
Humana sobre a Terra
A poesia não pode aceitar a negação da liberdade, mesmo quando aparente falar do lado oposto da liberdade, como um Pound com Mussolini ou um Neruda com Estaline (quantas vezes os tiranos se fazem passar por libertadores!). Hannah Arendt nota, aliás, a propósito de alguns poemas menos felizes de Brecht, que um poema politicamente distorcido e forçado nunca pode ser um bom poema.
Fernando Pessoa em 1935, reagindo com fúria a um discurso de Salazar, que vinha contrapor aos intelectuais sonhadores nostálgicos do abatimento e da decadência, os novos criadores que construíam cantando e rindo (Mário Beirão) os amanhãs que cantam do Estado Novo, dizia:
Ficamos sabendo, todos nós que escrevemos, que estava substituída a regra restritiva da Censura "não se pode dizer isto ou aquilo" pela regra soviética do poder "tem que se dizer isto ou aquilo". Em palavras mais claras, tudo quanto escrevemos não só não tem que contrariar os princípios (...) do Estado Novo (...), mas tem de ser subordinado às diretivas traçadas pelos orientadores do citado Estado Novo.
Osip Mandelstam, preso e exilado na Sibéria por um poema contra Estaline, dizia que ninguém preza tanto a poesia como os regimes totalitários, onde um poema pode custar a vida ao poeta. Ali a poesia é empenhamento inteiro e risco total.
Houve tempo em que esteve na moda pretender que a poesia não se devia ocupar da política. Sem necessidade de lembrar Dante, que descreve com deleite as penas infernais dos seus inimigos políticos, que o tinham condenado ao exílio, nem Camões, que termina o seu poema com conselhos políticos muito definidos dirigidos ao seu rei, lembro aqui Alexandre O'Neill e o seu VAT 65:
Abaixo a política!
Antes a poesia
Que é coisa mais séria.
Seria?
E foi nesse ano de 1965 que Manuel Alegre publicou Praça da Canção, livro que acompanhou com a sua voz a nossa luta contra essa ditadura que alguns queriam (e ainda hoje querem) disfarçar de "ditamole".
Nos anos 40 do século passado, meus pais, quando jovens estudantes universitários, frequentavam nos lados da margem sul do Tejo os recitais de poesia de Maria Barroso. Ali a voz extraordinária daquela grande senhora e grande atriz trazia os versos de combate de Álvaro Feijó, Carlos de Oliveira, Sidónio Muralha, e tantos outros, ao coração de todos aqueles que a ouviam a sonhar com um mundo melhor e, nalguns casos, a conceber formas de luta.
Estes recitais tiveram custos para os que os organizaram e para a própria Maria Barroso, que em junho de 1947, na sequência de um recital em Santarém de poemas, julgados "comunizantes" pelo governador civil daquela cidade, foi interrogada na PIDE. Como Maria Barroso conta, "tive um arrepio na espinha, mas isso não fez quebrar a minha vontade e a minha posição de não denunciar ninguém e de assumir a responsabilidade na escolha dos poemas". O processo acabou por ser arquivado, mas condicionou o fim da carreira de atriz de Maria Barroso. Em 1948 o governo de Salazar dá ordem ao Teatro Nacional D. Maria II de não a contratar mais. Os ditadores estão atentos à poesia.
Não esqueçamos nós, em memória de Maria Barroso, o lugar que a poesia sempre ocupou em todos os momentos históricos e movimentos populares de emancipação e de libertação. Até que por fim, como diz Cesariny, possa existir Figura Humana sobre a Terra.
Diplomata e escritor