Poder feminino
Durante várias semanas, este espaço conduziu os leitores pelos labirintos da mais fina jurisprudência dos nossos tribunais. Aquela que não faz primeiras páginas de jornais, mas tem uma influência decisiva na vida nas pessoas ou revela tendências e comportamentos da sociedade. Ao longo destes meses, alguns leitores queixaram-se de uma eventual linha machista que, amiúde, se verificava nos textos. O que, obviamente, não corresponde à verdade. Para provar isso mesmo, e como última crónica, o tema de hoje é a mulher. Uma homenagem à mulher e ao seu paciente, mas ao mesmo tempo pungente, esforço de afirmação na sociedade.
A ascensão da mulher no espaço público deveu-se, sobretudo, ao tipo de questões que o sexo feminino foi, nos últimos anos, trazendo para o debate. Como, por exemplo, a questão dos brinquedos do McDonald"s. "Menino ou menina?" Esta pergunta deixou de ser feita pela cadeia de restaurantes, depois de as mulheres se queixarem de discriminação, como brilhantemente a Lina Santos escreveu no Delas.pt.
Esta conquista do espaço público foi acompanhada por uma outra ao nível familiar. A mulher deixou de ser o elo mais fraco nas relações, passando a assumir, em muitos casos, um papel de liderança. Já nos idos de 1982, o Supremo Tribunal de Justiça (processo 069671) julgou um caso, em que uma mulher apedrejou o cônjuge, chamou-lhe "cabrão repetidas vezes em voz alta". Ponto alto: "Perante numerosas pessoas" disse ainda que havia de lhe "serrar os cornos". Tais factos, segundos os juízes conselheiros, violaram "gravemente o dever de respeito" e foram uma das causas para a "impossibilidade da vida em comum".
A luta pela conquista do espaço público prosseguiu durante muitos anos. Aproveitando a distração do homem, a mulher calcorreou os corredores do poder numa sociedade, afirmou-se, tornou-se temida. Cinco anos mais tarde do primeiro caso, novamente o Supremo Tribunal foi chamado a intervir num processo (075098) no qual uma mulher tomou as rédeas do assunto. Uma mulher foi condenada por ter "dirigido repetidamente" ao marido as seguintes as expressões: "Filho da puta, não tens potência, vou-te pôr os cornos." "Por mais baixa que seja a educação do casal, por mais embotada que seja a sua sensibilidade, não é possível considerar não terem aquelas palavras grave carga injuriosa", concluíram os doutos e sábios juízes conselheiros, considerando que a conduta da mulher comprometeu "seriamente a possibilidade de vida em comum".
Isto do girl power começa logo na adolescência/juventude. Não fosse a confissão de uma rapariga de 16 anos, a pena pelo crime de injúrias poderia ser mais elevada. Tudo porque, certo dia, dirigindo--se a um agente da PSP, disse "em tom alto e de modo a ser ouvida pelos circunstantes": "Tu tens é uns grandes cornos." Tendo em conta que a arguida ganhava, segundo o acórdão do processo 9840806 do Tribunal da Relação do Porto, 800 contos (4000 euros), os juízes consideraram que a pena a que tinha sido condenada em primeira instância (50 dias de multa à taxa de sete contos), até pecou por defeito. No fundo, a irreverência tem um preço.
E aquele cliché do homem protetor da mulher, que se for preciso até anda à porrada? Esqueçam, não é bem assim. Condenada em primeira instância, processo 213/14.8PBBJA, por um crime de injúria e absolvida de um de ameaça, uma mulher recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, que em 2016 a absolveu do crime de ameaça agravada, mantendo a condenação por injúria.
Vejamos os factos: a 16 de maio de 2014, "Maria" seguia no carro do seu companheiro. Na Rua Dr. Manuel Marques da Costa, em Beja, foram intercetados por dois agentes da PSP, que "iniciaram a fiscalização do veículo". A dada altura, "sem que nada o fizesse prever", a mulher saiu do carro e disparou: "Se multares o meu marido tiro o sapato e dou-te com ele nos cornos."
Advertida por um polícia que o seu comportamento lhe poderia valer a detenção e uma acusação de desobediência, "Maria" não ficou impressionado com o conhecimento do polícia e continuou: "És um cabrão, paneleiro, filho da puta, és uma merda pequenina, não tens idade para me prender, se me prenderes dou-te com uma pedra nos cornos."
Detida e posteriormente condenada apenas por injúria, o Ministério Público recorreu, defendendo a condenação por ameaça agravada. Sem sucesso, porque os juízes desembargadores Carlos Berguete e João de Sousa não viram nas palavras da arguida um mal real futuro, já que não vislumbraram que "Maria" concretizasse o que disse aos polícias. Ou será que os desembargadores tiveram medo de se cruzar com a mulher?