'Play it again, Sam'
Serendipidade, muita. Não teria sido ela a escolhida - nem ela seria ela - se não tivesse havido uma conversa de elevador, casual e brevíssima, entre um ascensorista sueco e uma caçadora de talentos de Hollywood, amiga de um produtor famoso. O rapaz sueco trabalhava no edifício das Selznick International Pictures, em Park Avenue, Nova Iorque, e sugeriu a Kay Brown que fosse ver Intermezzo, uma fita do seu país acabada de estrear, com uma jovem e radiante actriz no papel principal. Brown, que já antes convencera David O'Selznick a comprar os direitos e a levar à tela um épico grandioso, E Tudo o Vento Levou, seguiu o conselho, foi ver a fita da Suécia e acabou por ser a responsável pela vinda para América daquela radiante actriz de quem ninguém ouvira falar, Ingrid Bergman.
Mais tarde, em 1940, quando Ingrid viajava para os Estados Unidos com a sua filha, a bordo do S.S. Rex, de Génova a Nova Iorque, o navio fez uma escala inesperada em Lisboa, para que aí embarcassem mais passageiros, muitos dos quais refugiados de guerra. Nos longos dias a bordo, a actriz falou com eles, conheceu-lhes o destino, viveu de perto os seus dramas, sem imaginar que dentro em breve iria ela própria encarnar o papel de uma foragida célebre, talvez a mais célebre de todas.
Nesse ano de 1940, enquanto a Europa agonizava e sofria, um homem e uma mulher, fechados num apartamento da 5.ª Avenida, escreviam afanosamente o enredo de uma peça de teatro. Ele, Murray Burnett, era um jovem judeu de 27 anos, acabado de casar, que dava aulas de Inglês numa escola comercial de Nova Iorque e, às tardes, ensaiava uma carreira de dramaturgo. No ano anterior, a herança inesperada de um tio permitira-lhe concretizar o sonho de atravessar o Atlântico de navio, na companhia da noiva, que tinha parentes na Bélgica. Em Antuérpia, estes pediram-lhes que fossem até à Áustria para ajudar alguns refugiados a tirarem os seus haveres do país, já então subjugado pelo Anschluss. Em Viena, viram cartazes antissemitas, prenúncio da grande catástrofe, souberam do horror das leis de Nuremberga, das rotas de refugiados que partiam de Marselha rumo a Marrocos e depois, com sorte e dinheiro, de Lisboa até à América. Dispuseram-se a ajudá-los: ele passou a fronteira austríaca com os dedos das mãos cobertos de anéis de senhora, ela vestida com um casaco de peles no pino do Verão. Em Cap Ferrat, arredores de Nice, pararam num clube nocturno que mais parecia Babel, tantas eram as línguas faladas por uma clientela heteróclita onde se misturavam oficiais nazis e refugiados de guerra de várias nacionalidades, com um negro ao piano, vindo de Chicago, a tocar canções populares de jazz. Sentados a uma mesa, por entre o fumo e o barulho, Murray gritou à mulher: "Que cenário para uma peça!" E assim nasceu Casablanca.
Originalmente, a peça decorria em Lisboa, mas os autores decidiram mudá-la para um night club de Marrocos, com um negro ao piano, o Rick's Café, propriedade de um Richard Blaine, americano de idade indefinida (no filme tem 37 anos), ex-advogado de sucesso em Paris, de quem a mulher se divorciara em Reno, Nevada, em 1939, levando consigo os dois filhos pequenos. A banda sonora era óbvia: enquanto estudante em Cornell, Burnett apaixonara-se por uma música, que punha a tocar vezes sem conta, para desespero dos colegas de quarto. Composta para um musical da Broadway, cantada em disco por Rudy Vallée, chamava-se As Times Goes By.
Em Everybody Comes to Rick's, o nome da peça escrita por Murray e por Joan Alison, a protagonista feminina era uma americana, Lois Meredith, que se envolvera amorosamente com Rick Blaine em Paris ("we'll always have Paris"), antes de conhecer o marido, Victor Laszlo, herói da resistência checa (o nome inspirou-se em Laszlo Bellak, um judeu húngaro, campeão olímpico de ténis de mesa, entretanto refugiado na América). Burnett diria mais tarde que se baseou em si próprio e num colega de faculdade para conceber a personagem de Rick, para fúria da sua coautora, Joan Alison, que jurou que o modelo fora o actor Clark Gable e que, para a personagem de Lois, pensaram ambos nela própria, claro está. Além do envolvimento sexual de Rick e Lois, a peça tinha algumas tiradas picantes que amedrontaram os produtores teatrais da Broadway, tendo Murray e Alison pedido ao seu agente que tentasse a sorte em Hollywood, para uma adaptação ao cinema.
Outro acaso feliz: a MGM e a Paramount mostraram um ligeiro interesse em comprar os direitos, mas pouco ou nada se avançou até ao momento em que, cinco dias após o ataque a Pearl Harbor, o manuscrito foi parar à secretária de Hal Wallis, um produtor que trabalhava para a Warner Brothers. Nascido na Polónia como Aaron Wolowicz, no seio de uma família asquenaze que emigrara há pouco para Los Angeles, Wallis compreendeu de imediato o potencial de um enredo em que a América, encarnada por Rick Blaine, ia em socorro da Europa em apuros, corporizada em Victor Lazslo. O produtor disse mais tarde que se tratava de "peça obscura", escrita por "dois desconhecidos", e que só lhe despertou o interesse devido a uma súbita mudança da História, com o traiçoeiro golpe dos japoneses a pôr um termo abrupto às aspirações isolacionistas de Roosevelt e do seu povo. Na altura, as sondagens mostravam que 90% dos americanos preferiam a neutralidade e, durante muito tempo, os produtores de cinema evitaram fazer filmes "políticos", sobretudo de cariz antinazi, com receio de perderem o mercado europeu, que então representava 30% a 40% dos seus lucros de bilheteira.
Como tudo o que sucede na América, o milagre aconteceu devido a uma singular combinação de idealismo e avidez de lucro. Os irmãos Warner eram judeus originários da Polónia e o seu agente na Alemanha, Philip Kauffman, fora morto barbaramente pelos nazis em Berlim, em 1936. De todos os estúdios de Hollywood, os Warner foram os que mais se destacaram seja na promoção do esforço de guerra e de compra de war bonds, seja na propaganda antinazi, continuando a fazer filmes de guerra quando estes já tinham cansado o público e nem sequer eram rentáveis. Porém, no contexto pós-Pearl Harbor, um filme como Casablanca tinha francas hipóteses de ser um sucesso, tanto mais que o público mostrara apreciar fitas românticas passadas em cenários exóticos, de que era exemplo o êxito recente de Tangiers, uma adaptação de Pépé le Moko, estreada em 1938. Por tudo isso, os estúdios pagaram uma fortuna pelo original, 20 mil dólares, quantia nunca vista para uma peça teatral jamais levada à cena, o dobro do que haviam despendido o ano anterior por O Falcão de Malta, de Dashiell Hammett.
Na véspera de Ano Novo de 1941, Hal Wallis mandou um memorando a todos os departamentos da Warner Bros., dizendo tão-só que "a história que acabámos de comprar com o título Everybody Comes to Ricks chamar-se-á doravante Casablanca". O argumento foi entregue aos gémeos Julius e Philip Epstein, também eles judeus, especializados em champagne comedies e que, por isso, polvilharam o texto de tiradas sardónicas e momentos de humor (a famosa frase "round up the usual suspects!", do capitão Louis Renault, ocorreu-lhes quando estavam parados num semáforo em Sunset Boulevard). Howard Koch, outro argumentista judeu, participaria também na redacção do script, ainda que não tanto como mais tarde se gabou, mas deve-se a ele o aprofundamento da carga política e dramática do filme, sendo Koch que introduziu a nota do passado antifascista de Rick na Etiópia e na Guerra Civil espanhola, essencial para conferir ao cínico proprietário do Rick's Café a réstia de humanidade que despontará nos derradeiros instantes. Aí, a frase final celebérrima - "Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship" - foi cunhada, ao que parece, pelo próprio produtor, Hal Wallis. Durante as filmagens, pairou grande incógnita sobre esse momento, havendo a dúvida sobre se a protagonista feminina (Ilsa Lund, uma norueguesa de origens obscuras) iria ficar com Rick ou com Laszlo, o que dificultou imenso o trabalho de Ingrid Bergman, a quem foi dito que deveria manter uma ambiguidade amorosa relativamente a ambos, pois nem os argumentistas nem o realizador tinham decidido como seria o final, mesmo que este fosse previsível, pois os códigos da censura jamais permitiriam que Rick fugisse com Ilsa, uma mulher casada. Porém, mais um acaso feliz: graças a essa incerteza, há uma enorme tensão na personagem feminina, o que adensa o suspense quanto ao desenlace da trama, cuja cadência desenvolve em ansioso crescendo, com uma súbita aceleração nos instantes derradeiros, tal qual o galope da Marselhesa, cantada numa das suas cenas mais arrebatadoras e mais célebres, com gritos de "Vive la France!", "Vive la démocratie!". Na redacção do script participaria também Casey Robinson, que acentuou os traços românticos da película e, graças a esta combinação de argumentistas, Casablanca é um objecto cinematográfico único, singularíssimo, uma mescla inclassificável de comédia, pela mão dos irmãos Epstein, de filme de guerra e policial noir, por acção de Koch, e de história de amor, fruto da intervenção de Robinson. O mais curioso de tudo é que, em 1982, um aspirante a argumentista de nome Chuck Ross congeminou um ardil maldoso e enviou o script original de Casablanca a 217 agências, das quais 90 o recusaram liminarmente, com argumentos hilariantes sobre as debilidades dos diálogos ou a incipiência da trama, e só 33 reconheceram o embuste.
Outra serendipidade: na fase de pós-produção, o compositor Max Steiner, que fizera a banda sonora de King Kong e de E Tudo o Vento Levou, chegou a pensar retirar As Time Goes By do enredo, o que obrigaria a refazer várias cenas, mas tal não foi possível - e ainda bem - pois Ingrid Bergman já tinha cortado o cabelo para o seu filme seguinte. Também por isso, e ao contrário do que o produtor chegou a ponderar, não foi alterada a cena final no aeroporto de Casablanca, rodada em estúdio, com anões como figurantes para aumentar a escala da aeronave salvífica, feita de cartão. Não seria esse o único problema de altura na rodagem de Casablanca: Humphrey Bogart, no papel de Rick, era cinco centímetros mais baixo do que Ingrid Bergman, o que obrigou a prodígios de fotografia e ao uso de diversos adereços, desde almofadas a tijolos, passando por sapatos de tacão alto. Chegou a pensar-se em Ronald Reagan e em George Raft para o papel de Rick, mas a escolha de Bogart, que estava ansioso para se desfazer da imagem de gangster insensível dos seus filmes anteriores, revelou-se um feliz achado, mesmo reconhecendo que a actriz Marta Toren estava carregada de razão quando, a propósito dele, se interrogou, certeira: "Como é que um homem tão feio pode ser tão bonito?" Em contraste, Paul Henreid, escolhido para o papel de Laszlo, e considerado um belo homem, viria a revelar-se um canastrão completo, na tela e fora dela, sempre com receio de ser ofuscado pela dupla Bogart/Bergman (que, esclareça-se, nunca se envolveram ou sequer foram próximos fora do plateau), chamando "actor medíocre" a Bogart e sendo considerado uma prima donna por Ingrid Bergman.
Além do realizador, Michael Curtiz, originário de Budapeste, o casting surpreende pelo internacionalismo, com 75 actores estrangeiros e apenas três dos actores principais a terem nascido na América, entre os quais Dooley Wilson no papel de Sam, para o qual foi escolhido contra a vontade inicial do produtor, que queria uma mulher (Lena Horne, Ella Fitzgerald), e que tinha um handicap de peso: não sabia tocar uma nota de piano. Nos outros papéis, interpretações inesquecíveis de Claude Rains, encarnando o amoral capitão Louis Renault, de Conrad Veidt, oficial nazi, e, como sempre, do assombroso Peter Lorre.
De todos as coincidências felizes de Casablanca, a maior terá sido a seguinte: concebido por alturas de Pearl Harbor, o filme acompanhou o evoluir da guerra e estreou no preciso momento em que os Aliados desembarcavam no norte de África e em que a cidade de Casablanca se rendia para, não muito depois, servir de palco a uma histórica cimeira entre Churchill e Roosevelt, o qual abandonara há muito as simpatias por Vichy e os ziguezagues isolacionistas que tinham levado um judeu a enviar-lhe um telegrama fantástico: "Acabei de ler há pouco um livro chamado Bíblia Sagrada. Tem larga difusão neste país. É escrito inteiramente por estrangeiros, a maioria dos quais judeus. A primeira parte está cheia de propaganda belicista. A segunda parte condena os isolacionistas." Na véspera de Ano Novo de 1943, Roosevelt organizaria uma sessão privada de Casablanca na Casa Branca, de Gaulle pediu uma cópia para mostrar aos oficiais da França Livre e, curiosamente, a estreia europeia do filme ocorreu em Portugal, em 1945, só sendo exibido na RFA em 1952, e com vários cortes.
Uma curiosidade final: Murray Burnett, o autor da ideia de Casablanca, guardou até ao fim da vida, em cima da secretária, 15 páginas dactilografadas em que estava a trabalhar, uma sequela de Everybody Comes to Rick, na qual Rick se refugia em Portugal, na companhia do capitão Renault, e abre um bar no Estoril.
Porém, a curiosidade maior é esta: ao longo de todo o filme, e ao contrário do que muitos julgam, não é pronunciada uma vez sequer a frase lendária, imorredoura, "play it again, Sam".
PS - Na semana passada, cometi o erro de escrever aqui que, em 1961, Kennedy viajou para Paris a bordo de um Boeing 767, quando na realidade se tratava de um Boeing 707. Aos leitores, as minhas desculpas.
Historiador. Escreve segundo a antiga ortografia