Plano de Recuperação e Resiliência: os grandes ausentes

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O Plano de Recuperação e Resiliência, com quase 14 mil milhões de euros associados, foi submetido a um breve período de discussão pública. Assenta toda a sua narrativa nos objetivos das transições climática e digital e da construção de uma economia e sociedade mais resilientes. Não creio que alguém discorde destes vetores: estão consensualizados em torno das exigências do clima e da evolução digital, que de resto conheceu um salto forçado em virtude da pandemia.

Mas o documento padece, na minha opinião, de uma contradição estrutural: afirma que a recuperação económica tem de assentar nas empresas privadas, mas faz uma opção clara pelo investimento no setor público ou através do setor público. Não espanta, espelha a visão socialista: exige dos privados, mas concentra os recursos financeiros no público. Esperemos, pelo menos, que use as verbas para agilizar a nossa administração pública e a tornar mais amiga de empresas e cidadãos.

No pós-crise financeira da viragem da década de 2010, pediu-se às empresas um esforço exportador e de internacionalização, alinhado com o desafio digital da indústria 4.0. Responderam de forma exemplar. Agora, na viragem da década de 2020, insiste-se na necessidade de intensificar a transição digital e de garantir a sustentabilidade. Para lhe dar respaldo, tem sido afirmado o princípio do no significant harm: não haverá fundo perdido ou empréstimos a investimentos e atividades que não cumpram este princípio de não prejuízo grave dos objetivos ambientais. Mas se é assim, e concordo com o objetivo, há que ser mais generoso no pacote financeiro destinado às empresas.

A acrescer a esta contradição estrutural, o problema do plano está sobretudo nos grandes ausentes. Alimentação e água, dois grandes desafios globais com particular expressão entre nós, são deficientemente tratados. O mar, na perspetiva nacional, é uma grande omissão. Em 19 componentes, que agrupam reformas e investimentos, não há uma dedicada ao mar, à agricultura ou ao agroalimentar, estes últimos apenas brevemente referidos a pretexto da inovação.

O plano parece ignorar que um dos grandes défices da economia portuguesa é o da balança agroalimentar e, consequentemente, não assume o desafio de o reduzir. Por outro lado, apesar de constituir uma componente autónoma, a gestão hídrica aparece circunscrita a partes do território. Ora o tema da escassez da água e da sua gestão é crucial para o ambiente, a economia e a coesão territorial de todo o país, e há vários projetos que merecem ser impulsionados, como o Projeto Tejo.

Os objetivos estratégicos europeus, que Portugal partilha e para os quais contribui, não podem omitir opções nacionais mais específicas. Pelo contrário, nessa especificidade está o nosso contributo para o todo europeu. Por isso, espanto-me quando na referência à biotecnologia não há uma palavra sobre biotecnologia azul e o seu enorme potencial de aproveitamento sustentável dos nossos biorrecursos oceânicos. Ou quando se assume a necessidade de aumentar a capacidade de sequestro de carbono pela floresta e se omite o ainda maior potencial de sequestro de carbono pelo mar (carbono azul). Se há tema em que podemos acrescentar ao conjunto da Europa, é o mar. E não pode ficar circunscrito a uma opção regional.

Aguardemos a conclusão do documento, na expectativa de que estas e outras falhas (a cultura, por exemplo!) ainda possam ser corrigidas.

Professora da Nova School of Law. Coordenadora do Mestrado em Direito e Economia do Mar

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