Plano Costa + Silva e milhões europeus: para que país?
Escrevo este texto enquanto regresso de uma das mais extraordinárias aldeias de Portugal, Rio de Onor, próximo de Bragança. Este é um país onde não há rede de telemóvel em dois dos três operadores e a Internet também só chega a muito poucos, e cara. É outro mundo. Na semana em que Portugal jubila com 45 mil milhões frescos vindos da Europa para sermos um "novo país", o Interior de Portugal vai morrendo de velho, desamparado. Como terá sido a vida de milhares de crianças de tantos pequenos locais de Portugal, durante a pandemia, sem comunicações básicas. Que escola? A Telescola via TDT? É um ótimo remendo, mas na verdade estas crianças e adultos são excluídos digitais de forma totalmente injusta.
Não é de hoje este esquecimento, foi sempre assim. Ana Preto, 90 anos, uma figura popular em Guadramil, uma aldeia próxima de Rio de Onor, conta porque ela não sabe ler: a professora primária da aldeia, na década de 30, foi-se embora e durante cinco anos não foi substituída. Os miúdos da geração dela ocupavam-se do pastoreio e, perdida aquela oportunidade, não voltaram à escola.
Tio Mariano, em Rio de Onor, relembra que na pandemia da pneumónica de 1918, não havia sequer estrada que os ligasse a Bragança. Para se ir ao médico, só aproveitando o regresso do carro de bois que entregava nas aldeias o carvão, semanalmente. O médico só visitava a aldeia de vez em quando, a cavalo, sem capacidade de nada fazer de eficaz numa pandemia galopante como foi a Pneumónica.
Hoje aquelas aldeias têm uma estrada suficiente para o trajeto rápido até Bragança, as medidas covid-19 são claras e o presidente das várias Juntas de Freguesias unidas, Mário Gomes, luta pelo lhe resta: o turismo. Mas olha-se em redor e há sempre uma dúvida: como se defende o belíssimo parque natural de Montesinho (onde até corsos se conseguem ver à luz do dia), se não há maneira de fixar as novas gerações? Ou seja, os guardiões do território e da biodiversidade farão algum dia parte integrante do qualquer plano estratégico para Portugal?
Por isso quando aterramos no Plano de António Costa e Silva, apresentado esta semana, percebe-se como este futuro não assenta numa base mais realista do Portugal que permanece desconhecido, pouco formado e sem ferramentas básicas para ir mais longe.
Um pequeno exemplo do Plano Costa e Silva: vamos finalmente usar a limpeza dos matos para alimentar a produção de energia por biomassa, diz-se no documento. Bom, ótimo. Há 20 anos que existe essa ideia. Mas recorde-se que as centrais de biomassa se tornaram num embuste gigantesco de uso de subsídios baseados em "energia verde" que, na verdade, passaram a aumentar o problema da floresta. Ou seja, a destinar madeira (dos incêndios, por exemplo, e não o mato) para os fornos de produção elétrica.
Qualquer pessoa que conheça a floresta sabe que é pouco rentável andar a limpar mato para o vender, porque a mão-de-obra é cara e o mato gera um enorme volume (e não peso) que torna o transporte dispendioso. Resultado: incentivar centrais de biomassa de árvores estimula mais incêndios criminosos.
Outra questão difícil deste novo plano: alta velocidade. Estive em Sevilha em 1992 aquando da chegada dos primeiros comboios de Alta Velocidade entre Madrid e a capital da Andaluzia. Portugal perdeu absurdamente 30 anos face a Espanha e 50 face a França. Acrescento que nos últimos 20 anos escrevi sempre a favor de ligações ferroviárias rápidas entre Lisboa-Porto ou, idealmente, entre Braga-Faro e sobretudo numa bitola europeia onde pudessem existir comboios de mercadorias. Mas neste momento, olhando para a crise do TGV em França, pergunto: que comboio queremos para essas linhas de bitola europeia? Não pode ser nada de parecido. Há inúmeras tecnologias a surgir. Ainda fará sentido quando estiver concluído, em 2030?
Anedoticamente, ainda não conseguimos ter uma rede fiável, de voz e de dados, no comboio Alfa entre as duas maiores cidades.
Um caso pior: novo aeroporto de Lisboa. A ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, disse algo que deve ter deixado o Governo de cabelos em pé: o aeroporto de Beja pode ser ligado a Lisboa por ferroviária rápida e assim evitar a construção do Montijo. Sensato.
Ora, como pode alguém do Governo ter dito algo tão desalinhado da versão oficial? Bom, na verdade, Ana Abrunhosa conhece bem o país e o custo do dinheiro. Foi presidente da Comissão de Coordenação da Região Centro, teve a responsabilidade do controlo de fundos comunitários aplicados em muitas indústrias essenciais para o país, e ainda teve de gerir algumas das ações dos pós-incêndios de Pedrogão/Castanheira de Pêra e do pinhal de Leiria (15 de Outubro de 2017). Só uma pessoa que percebe os dilemas do mundo real pode ter esta visão. Mas alguém quererá saber do que ela disse?
Aliás, o Plano Costa e Silva não se atreveu a desafinar o que o Governo já havia decidido. Provavelmente o seu autor está inteiramente de acordo com essa ideia de um novo grande aeroporto para Lisboa. (A expressão "novo grande aeroporto" deixa passar a ideia de que poderão estar a falar de Alcochete e não do Montijo).
Mas é exatamente neste caso do aeroporto, tal como na exploração mineira ( o lítio é um crime enorme) ou na ingenuidade sobre a floresta, que este plano precisa de realidade: porque há uma grande distância entre a extraordinária competência técnica de Costa e Silva no sector energético ou na globalização versus a capacidade deste plano em respeitar a história do território e as vantagens da não exploração de algumas oportunidades. Portugal é o território, não apenas estes portugueses de circunstância que somos nós, no século XXI.
É verdade que temos muitos milhões da União Europeia para investir e que temos de criar emprego depressa por causa da Covid. Mas destruir as nossas vantagens competitivas históricas em nome de uma ilusão de desenvolvimento é um fado que vivemos com Cavaco e depois com Sócrates. Lá vamos nós em direção ao pensamento produzido a partir dos centros de governança financeira e económica da capital mas que nos deixam soterrados em coisas e custos.
Será que a economia portuguesa precisa de ser competitiva através de mais investimentos predadores vindos pela mão de grandes nomes internacionais ou de "campeões nacionais" eternamente subsidiados?
A solução para a floresta é continuar a desenhar estratégicas ótimas no papel, mas cujo resultado acaba sempre por ser a sua industrialização vegetal?
Ou, pelo contrário, a brutal inovação no transporte elétrico pelo ar pode fazer-nos saltar etapas de colossais investimentos à moda do século XX e posicionar-nos numa nova senda de transportes de média distância e ter uma nova visão para aeroportos e mobilidade suave?
Já teremos percebido realmente que o que nos salvou no turismo não foi o preço nem os aeroportos, mas um território ainda minimamente preservado?
A apresentação da "Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030" aconteceu no mesmo dia que o primeiro-ministro conseguiu um resultado muito bom na cimeira de Bruxelas. Mas isto tem de ser apenas o princípio de uma visão. A tecnologia de "gastar o dinheiro comunitário" é a mesma de há 30 anos e só a super-elite dos fundos tem razões para celebrar. Para assim não ser, "Portugal 2030" tem de incluir gente de mais gerações, vozes das empresas do Norte e Centro que suportam as exportações portuguesas, mas também gente da filosofia ou da sociologia, por exemplo. Os engenheiros e economistas não podem ficar, de novo, sozinhos a desenhar o futuro.