Pizarro resgatou Rakhmaninov, o transcritor

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Um desafio superado a roçar a distinção, tendo em conta a avaliação que Artur Pizarro fizera no DN das dificuldades que o esperavam no recital do final da tarde de ontem, na Gulbenkian.

Em programa, um conjunto de 14 transcrições (duas delas pluri-andamentos) que Sergei Rakhmaninov fez ao longo da sua vida, na grande tradição dos compositores-pianistas virtuosos (ou vice-versa) do século XIX.

Cada parte abriu com uma obra de maior fôlego, respetivamente, a 'Suite para orquestra em ré m' dele próprio e a Suite (só Prelúdio, Gavotte e Gigue) da 'Partita n.º 3 para violino solo' de J.S. Bach.

A primeira mostra um jovem Rakhmaninov "às voltas" com a escrita de um primeiro andamento de envergadura sinfónica, e com um 'mix' de intrincada polifonia orquestral e escrita de bravura ('Allegro' final). Mas verdadeiro coração pulsante da obra e momento profético do por-vir sinfónico de Rakhmaninov (andamentos lentos das suas sinfonias) foi o 'Lento', andamento com o qual a graça e leveza primaveris (assim "visto" por Pizarro) do 'Menuetto' que segue estabelece contraste curiosamente harmonioso.

Após o hino americano, 'Gopak' (or. Mussorgsky) teve de Pizarro um misto de sonoridade de sinos e de atmosfera aldeã, ambos festivos. Voltámos a "Rakhmaninov transcreve Rakhmaninov" com duas canções suas: em 'Margaridas', Pizarro captou de imediato o melancólico lirismo típico do autor, num ambiente (escrita, harmonia) próximo de alguns dos seus 'Prelúdios'; já em 'Lilases' o 'toucher' de Pizarro produziu uma atmosfera líquida reveladora de um Rakhmaninov raramente tão impressionista. A 'Lullaby' (or. Tchaikovsky) foi sendo imersa em figurações virtuosísticas progressivamente profusas e densas (e vagueantes), dadas por Pizarro com imaculada igualdade. Finalizando a 1.ª parte, Pizarro tocou o famoso 'Voo do moscardo' (or. Rimsky-Korsakov): rapidez resfolegante, mantendo sempre claras a articulação e a condução vocal (isso seria, aliás, uma das marcas mais forte do pianismo de Pizarro recital fora).

Na 2.ª parte, a transcrição de Bach (que Pizarro "atacou" um pouco "a frio") mostrou um Rakhmaninov bastante mais sóbrio (ou frugal) que Busoni em incursões semelhantes, logo denotando uma certa infusão da estética neoclássica sua coetânea. O 'Prélude' é claramente onde o russo mais investiu de si próprio. Guardámos de Pizarro sobretudo as sumas elegância e graça com que fez a 'Gavotte': às vezes, o 'toucher' é tudo!

Em 'Wohin?' (or. Schubert) e 'Lachtäubchen' (or. Behr), vimos Rakhmaninov num progressivo processo de apropriação dos originais, com múltiplas figurações de 'bravura' e densificações polifónicas dadas por Pizarro com exatidão e elegância. No 'Scherzo' do 'Sonho de uma noite de verão' (or. Mendelssohn), o plano auditivo "cala" muito do que se poderia perceber ao observar: mas Pizarro deu conta de tudo com um soberano controlo de tipo e peso da articulação, condição, afinal, da preservação do espírito do original. Se a obra é de per si difícil, tocá-la assim, então, é mesmo muito difícil!

O 'Menuet' da 'Arlésienne' (or. Bizet) voltou a mostrar-nos um Rakhmaninov em fértil dialética com o Neoclassicismo, mas na parte B, Pizarro criou ondas de som movendo-se, num "império" de cor harmónica! Por fim, as duas 'hommages' antitéticas de Rakhmaninov ao seu amigo e colega de tantos concertos, o violinista Fritz Kreisler. 'Liebesleid' explora territórios para nós ali já familiares, mas em 'Liebesfreud' dá-se um processo de apropriação que faz dela um quase estudo preparatório das 'Variações Corelli' nem uma década mais tardias!

No primeiro extra (único que ouvimos), Pizarro escolheu a 'Melodia da Dança dos espíritos abençoados', do 'Orfeu e Eurídice', de Gluck (transcrição de Sgambati). Bonito, pelos 300 anos do nascimento de Gluck e pelos 100 da morte de Sgambati. E há uma gravação da peça... por Rakhmaninov!

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