Peter Pan está de volta, mas é Wendy quem manda
Rezam as crónicas que foi em 1935 que Walt Disney mostrou pela primeira vez interesse em fazer uma adaptação da obra máxima de J.M. Barrie. Era para ser a sua segunda longa-metragem, depois de Branca de Neve e os Sete Anões (1937). O tempo passou, aconteceu o fatídico ataque a Pearl Harbor, em 1941 - que levou as forças armadas americanas a assumir o controlo dos estúdios, encomendando a produção de filmes de propaganda de guerra -, e tanto Peter Pan como Alice no País das Maravilhas, projetos em pré-produção, foram arquivados. Isto até que em 1949, com outra saúde financeira, a Walt Disney Productions relançou esses trabalhos. Enfim, avanços e recuos, só em fevereiro de 1953 chegaria aos cinemas As Aventuras de Peter Pan, com o senhor Walt insatisfeito em relação ao seu protagonista, que considerava "frio e antipático" (dizem os especialistas na literatura de J.M. Barrie que, pelo contrário, estava muito bem assim, já que originalmente Peter Pan seria um sociopata sem coração...).
Sete décadas depois, e no mesmo ano em que se comemora o centenário dos estúdios do Rato Mickey, uma versão live-action do clássico segue direta para o serviço de streaming Disney+, sem passar pelos cinemas (parece que deu o lugar à Pequena Sereia, que chega às salas escuras daqui a poucas semanas: 25 de maio). Peter Pan & Wendy, com a assinatura de David Lowery, é mais ou menos o que se espera que todas as versões em imagem real dos sucessos da Disney sejam: revisitações do espírito das obras originais, com um sabor a contemporaneidade. Ou melhor, filmes com a missão implícita de ajustar detalhes e abordagem narrativa ao sistema de valores e ideias do nosso tempo.
"Temos uma sensação de familiaridade [com esta história] e é preciso honrar isso. Não podemos reinventar a roda. Importa dar ao público um filme em que se reconheça o Peter Pan e a Wendy que toda a gente conhece e estima, embora apresentando-os sob uma nova luz. Este foi o verdadeiro desafio; encontrar essa luz e a sua textura", disse o realizador na conferência de imprensa virtual a que o DN teve acesso. Para Lowery, mergulhar nas nuances do texto acabou por ser um processo de (re)descoberta e renovação: "Quando comecei a trabalhar no argumento, e à medida que o desenvolvíamos ao longo de vários anos, percebi que não só havia mais para descobrir dentro dele, mas também havia muito que nunca fora visto na tela antes."
A história do rapaz que se recusa a crescer, e que visita a casa de Wendy numa noite, fazendo-a voar no céu de Londres, na companhia dos dois irmãos mais novos, pode ter um só destino - a Terra do Nunca -, mas algumas das suas personagens levaram aqui uma pincelada fresca e mais humana. É o caso evidente do Capitão Gancho, interpretado por Jude Law, que afinal não é só um mauzão vingativo de cabeleira farta e casaco vermelho, mas alguém com as suas razões... "O David deu-me esta oportunidade de realmente compreendê-lo e explorar o seu passado, perceber o que o tornou vilão. Para mim, era importante que houvesse alguma verdade para ele", começa por se congratular o ator na mesma conferência. Revelando também que voltou a folhear o romance de J.M. Barrie, em jeito de preparação para o papel: "O que é notável sobre o livro é que às vezes é esparso, e, no entanto, as suas frases conjuraram em todos nós anos e anos de imaginação. Hook [Gancho], por exemplo, está apenas em alguns capítulos, mas a frase usada para o descrever é tão específica... Fala do facto de ele ser o único pirata de quem Long John Silver [o pirata de A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson] tinha medo, o que significa que só poderia ser mesmo assustador, e fisicamente presente de uma forma não pantomímica, mas sim séria e real."
Pois bem, o Captain Hook de Law não tem muito que ver com o icónico desenho animado nem com a versão de Dustin Hoffman no filme desditoso de Spielberg. Precisamente, o realizador que Lowery refere quando lhe perguntam sobre o tom maternal deste Peter Pan & Wendy: "Costuma dizer-se que Steven Spielberg, até há bem pouco tempo, fazia filmes sobre o seu pai, já eu continuo a fazer filmes sobre a minha mãe (risos). O núcleo emocional do filme enraíza-se naturalmente nisso, sobretudo porque estamos mais focados na Wendy."
Trazer o nome da personagem feminina para o título não foi um gesto inédito. Na verdade, este é o título original do livro de Barrie. E Lowery quis voltar a essa perspetiva da jovem - que já está demasiado crescida para brincar com os irmãos, mas não se sente preparada para entrar no mundo dos adultos - porque é através dela, e da sua maturidade, que as outras personagens revelam camadas ocultas ou inexistentes na versão animada. Para Ever Anderson, a atriz na pele de Wendy, é importante lembrar que "não era fácil ser mulher na época em que a história se passa (início de 1900). Deve ter sido assustador para ela ter de preparar-se para uma vida que já estava definida antes que a própria estivesse pronta para isso. O que eu adoro na Wendy é que ela se mantém fiel a si mesma", diz, como se falasse de uma figura real.
Esse traço de "realismo" dentro da fantasia que é Peter Pan e Wendy fica também visível no design de produção, que evitou os truques exaustivos da nossa era digital. David Lowery, realizador capaz da criação mais indie (História de um Fantasma) e do épico mais vistoso (A Lenda do Cavaleiro Verde), é o primeiro a reconhecer o valor das imagens enquanto índice de realidade. "Queria que parecesse que Neverland [Terra do Nunca] é um lugar onde realmente poderíamos chegar, e não um estúdio de som ou tudo em CGI: um lugar ao nosso alcance. E pensei em todas as paisagens que me atraíram quando era mais jovem. Para criar esta Neverland, acabámos por filmar em Newfoundland [Canadá] e nas Ilhas Faroé, que são paisagens mágicas para mim. São uma versão da Neverland que nunca vimos antes, porque não refletem o lado tropical e havaiano das gerações passadas."
Lowery gosta de frisar o ponto do "nunca visto". E entre o "nunca visto" aqui está o primeiro ator com síndrome de Down num filme da Disney, Noah Matthews Matofsky, que surge no grupo dos Meninos Perdidos, desta vez composto também por meninas... De facto, há muito material para o exercício "descubra as diferenças" entre as duas versões. Mas talvez a mais relevante, para além dos traumas do Capitão Gancho, seja a postura doce da nova Sininho (Yara Shahidi) em relação a Wendy, que estabelece um contraste óbvio com a atitude ciumenta da pequena fada na animação de 1953. "Quando olhamos para o filme original, esta relação foi, na melhor das hipóteses, redutora. E nós queríamos ir numa direção diferente, criar algo que não fosse simplesmente duas melhores amigas a conviver em Neverland... Queríamos ver estas personagens a crescer e a transformarem-se uma à outra! Claro que a Tinker Bell [Sininho] fala na língua das fadas e a Wendy só tem a linguagem humana, então o desafio era as duas ouvirem-se de alguma maneira - e desse desafio nasce o sentido do progresso, a garantia de que se tornam melhores", explica Lowery. Uma lógica extensível a todas as personagens.
No fundo, vamos sempre dar ao objetivo cirúrgico destas revisitações dos clássicos, que resolvem uma ou outra nota desafinada. Por falar nisso, apesar da ausência de temas musicais como The Second Star to the Right, essa encantadora melodia que marca os primeiros minutos do filme de animação, Peter Pan e Wendy não descura o papel da música. Lowery convocou para a equipa o seu compositor de sempre, Daniel Hart, que assina a banda sonora e uma canção de embalar... para um momento-chave.
E o que dizer dos 100 anos da Disney? Os mais novos estão radiantes por integrar uma produção que já vem com o símbolo do aniversário estampado no genérico de abertura. "É um enorme privilégio interpretar figuras que estão tão enraizadas na infância das pessoas desde o início dos anos 1900, quando o livro foi escrito!", atira Alexander Molony, o intérprete vivaço de Peter Pan. "Acho maravilhoso que todas as personagens tenham sido desenvolvidas para que se possa ver as suas histórias de fundo, e preparar uma nova geração para desfrutar delas tanto quanto todos nós desfrutámos enquanto crescíamos", diz Anderson/Wendy. Faz-se aqui uma ponte para o futuro, que os adultos agarram: "Obviamente estou muito orgulhoso de fazer parte desta celebração, deste grande marco, mas estou particularmente orgulhoso de Peter Pan e Wendy, respeitando o passado, ser uma versão muito moderna e fiel ao presente", realça Jude Law, depois das palavras do realizador, para quem "é importante refletir sobre o legado e compreendê-lo", embora esteja "mais entusiasmado em olhar para os próximos cem anos".
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