Pessoa

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Tudo em Fernando Pessoa - cujos 70 anos da morte hoje decorrem - é fragmento, não propriamente caos, mas texto em dúvida, incompletude. Pessoa, ele mesmo, "não existe, propriamente falando", tudo nele é (des)construção, descentramento. Álvaro de Campos, um dos heterónimos, tinha razão, e usar as suas palavras é adequado no momento da publicação da obra ortónima em três volumes, dois a sair em Dezembro (1902-1917 e 1918-1930) e um terceiro (1931-1935), em 2006, numa edição criteriosa de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine (Assírio & Alvim).

Cumpre-se assim o desejo dos amantes e estudiosos de Pessoa (cuja obra entra hoje no domínio público) que passam a dispor do "corpus inteiro da sua poesia ortónima em português, pelo menos a não atribuída aos heterónimos e a outras personalidades."Mas - refere-se no posfácio do terceiro volume - "a sede de uma poesia toda ou de uma poesia completa continuará a não poder ver--se inteiramente satisfeita", dada a dimensão inacabada e múltipla da obra literária pessoana.

A edição reúne os poemas éditos em português assinados com o nome de Fernando Pessoa e aqueles cuja publicação foi fruto de intervenção de diversos investigadores (entre 1935 e 2005). Incluem-se ainda 234 inéditos no primeiro tomo, quase todos escritos entre 1902 e 1915, datas não contempladas, até agora, pela edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, dirigida por Ivo Castro; oito ou nove no segundo; alguns mais no terceiro. A apresentação segue uma ordem cronológica.

Quanto aos primeiros, explica Manuela Parreira da Silva - professora da área de tradução da Universidade Nova de Lisboa e pertencente ao grupo de investigação da obra pessoana, dirigido por Teresa Rita Lopes - reproduziu-se o texto publicado pelo autor em revistas e outras publicações, excluindo a Mensagem; relativamente aos segundos, foram objecto de uma refixação (novas propostas de leitura, articulação de estrofes ou redefinição do corpo do poema), a partir dos documentos autógrafos existentes no espólio da Biblioteca Nacional. Tendo em conta que as sucessivas reimpressões da obra estão cheias de gralhas e erros (atribuição de autoria, data, etc.), tentou conferir-se os textos com os originais sempre que encontrados, recusando uma "leitura impressionista", que já conduziu a resultados desrazoáveis, apoiando-se no sentido. É a falta deste, numa primeira abordagem, a alertar, muitas vezes, para a necessidade de procura de outros caminhos.

Há nesta edição novos poemas, uns mais relevantes do que outros (o que contraria a ideia de que toda a obra de qualidade teria sido publicada em vida) e novas leituras de poemas anteriormente publicados, o que, segundo Manuela Parreira da Silva, "nem sempre é bem aceite por alguns pessoanos". Surgem, por outro lado, casos em que se considera serem dois poemas o que antes foi entendido como um e vice-versa.

A releitura crítica permitiu, comenta a investigadora, questionar a justeza de certas atribuições de autoria "Este é um dos problemas principais do estudioso pessoano, o que torna discutível a inclusão no cânone de poemas recentemente editados e atribuídos a Pessoa na Edição Crítica."

"Os inéditos, esses, são de diferentes ordem e valor, dos poemas de juventude aos do poeta maduro. Esta edição, que pode funcionar como um historial dando conta da evolução do autor, abrange o Pessoa mesmo antes da existência lisboeta e portuguesa, coincidindo com a transição da adolescência para a juventude. Por ela passam ainda a descoberta da sexualidade, a luta interior - uma constante da sua poesia -, o criador já seguro e o dos tempos anteriores à morte.

A poesia ortónima, diz Manuela Parreira da Silva, segue, regra geral, características formais mais tradicionais. Quanto à temática, é permanente a da multiplicidade do Eu; o não ser bem ou suficientemente amado; o estar entre, entre o que é e o que poderia ter sido, a nostalgia da infância. Se há textos dirigidos a mulheres como a Ophelia, também os há sobre o amor homossexual. Em tudo sempre persistindo a saudade do que nunca chegou a ser no labirinto de si mesmo. Os poemas à la manière de A. Caeiro, Bateram com uma bota na cabeça de metade do silêncio, eventualmente revelador de um Pessoa anunciador do surrealismo, e A Vida de Arthur Rimbaud abrem leituras para a obra de um poeta ainda desconhecido.

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