Pessoa nunca pisou Espanha, mas agora chegou ao Reina Sofía
O primeiro impacto é não haver estranheza. Quando se entra na primeira sala que o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía dedica à exposição Pessoa. Toda a Arte É Uma Forma de Literatura, quem nos recebe, ao fundo, é o celebérrimo retrato que Almada Negreiros pintou do poeta (a segunda versão, de 1964), habitual presença entre a coleção moderna da Fundação Gulbenkian. Também lá estão Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, seus heterónimos, igualmente trazidos à forma por Almada. Mas nem essa presença sempre múltipla nem os horóscopos feitos por Pessoa (1888-1935) à 2.ª República Espanhola ou a Amadeo de Souza-Cardoso parecem causar estranheza a quem cresceu no lugar da Tabacaria ou da Mensagem, lugar onde, na mesma sala, vemos Pessoa a passar no Chiado e, noutra, o grande quadro A Ascensão do Quadrado Verde e a mulher do violino, de Amadeo Souza-Cardoso, ou o tríptico A Vida, de António Carneiro, obra maior do simbolismo português. Mas estamos em Espanha, país que Fernando Pessoa nunca terá visitado e onde, segundo João Fernandes, subdiretor do museu e curador, com Ana Ara, da exposição, "estas obras de arte são pouco conhecidas, e Pessoa é muito mais conhecido do que os artistas seus contemporâneos".
Aqui, na mostra que hoje abre ao público, esses contemporâneos giram em torno de um núcleo que é Pessoa, cujos poemas e textos estão escritos nas paredes em que convivem com as obras de Amadeo, Eduardo Viana, Almada, Abel Manta, Mário Eloy, Júlio dos Reis Pereira, Santa-Rita Pintor ou o casal Robert e Sonia Delaunay. "Sabe que apesar de ter havido uma exposição do Amadeo Souza-Cardoso na Fundação Juan March [em Madrid] há mais de 18 anos e de ter havido outra do Almada, mesmo assim estes artistas ainda são muito desconhecidos em Espanha. Há muitos artistas e muitas obras aqui que são mostrados pela primeira vez", afirma o subdiretor português e ex-diretor do Museu de Serralves.
São de Sonia Delaunay as obras que Ana Vasconcelos, da Fundação Gulbenkian, que coproduz esta mostra e empresta 56 das cerca de 160 obras, admira, numa das muitas salas: "Sabia que estavam a preparar uma exposição grande, mas fiquei surpreendida." Pouco tempo antes, na conferência de imprensa de ontem, Ana desejara a uma plateia maioritariamente espanhola que esta mostra fosse "uma descoberta de Portugal, como Almada dizia de Amadeo na Europa": "A primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX."
O mesmo fizera o diretor do Reina Sofía chamando a atenção para as "características próprias" das vanguardas portuguesas, que na sua periferia se distinguem do que então acontecia em centros como Paris. Manuel Borja-Villel enquadrou Pessoa. Toda a Arte É Uma Forma de Literatura na programação do museu para 2018, que inclui uma exposição dedicada ao dadaísmo russo entre 1914 e 1924, como Malevich e Rodchenko, e outra à produção de artistas estrangeiros em Paris como Picasso ou Kandinsky, entre 1944 e 1968.
"Uma história de arte faz-se de muitas histórias. A das vanguardas artísticas portuguesas é muito especial", dizia João Fernandes, referindo-se a Pessoa como um "escritor, um pensador, que não se ocupou assim tanto das artes visuais", mas que "vai construir conceitos de vanguarda, em vez de importar as vanguardas de Paris. Aqui apresentamos as obras a partir dos conceitos de Pessoa". Daí que caminhemos entre salas dedicadas ao paulismo, com desenhos e cartas de Teixeira de Pascoaes ou Amadeo, ao interseccionismo ou ao sensacionalismo, onde vemos o mercado de Vila do Conde como Sonia Delaunay o viu e com as cores em que o pintou.
Uma rapariga que fala espanhol usa, ao ombro, um saco de pano com a capa da revista Portugal Futurista (1917), onde, a letras vermelhas, figuram nomes como Santa-Rita Pintor, Mário de Sá-Carneiro ou Álvaro de Campos. Numa das paredes está o texto que dá nome à exposição. Chama-se "outra nota ao acaso" e foi publicado em 1936 na revista Presença: "Toda a arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa. Há duas formas de dizer - falar e estar calado. As artes que não são a literatura são as projeções de um silêncio expressivo." E foi também nesse silêncio expressivo que, o mais das vezes, estes artistas e as vanguardas que carregam dialogaram com Pessoa. Diálogo esse (re)criado na exposição pelos curadores para que, como explicava Ana Ara aos jornalistas, se siga Pessoa, fazendo "este exercício de procurar a frase, o poema que contêm" as obras. Não é por acaso, por exemplo, que no núcleo dedicado à guerra as águas-fortes de Adriano Sousa Lopes coabitam com o poema "O menino da sua mãe" (Lá longe, em casa, há a prece:/ "Que volte cedo, e bem!"/ (Malhas que o Império tece!)).
Mais vizinhos do que seguidores
"Não se pode dizer que haja seguidores do Pessoa nas artes plásticas. Nem ele escreve tanto assim sobre os artistas nem os artistas manifestam explicitamente seguimento em relação ao Pessoa. Mas coincidem. E a verdade é que se encontram nas revistas, e protagonizam momentos culturais muito importantes em Portugal. Por exemplo, o da revista Orpheu [1915], que na altura foi um escândalo, uma pedrada no charco no contexto cultural português." Daí que as revistas - A Águia, K4 O Quadrado Azul, Portugal Futurista, Presença - que representam um lugar máximo de convivência entre os artistas destas vanguardas e o poeta ocupem um lugar tão preponderante nesta exposição em que a parte documental tem dimensão quase igual à das obras.
Além desse lugar composto pelas revistas, continua João Fernandes, "é tentador interrogar quais são as características de uma vanguarda periférica como a vanguarda portuguesa a partir dos conceitos que o Pessoa lança para as suas próprias vanguardas. É muito curioso ver como, por exemplo, Amadeo Souza-Cardoso se demarca do cubismo e do futurismo exatamente do mesmo modo que Pessoa, que achava que eram gramáticas artísticas limitadas, e que não traduziam toda a necessidade de abrir a arte à vida e de experimentar a vida de todas as maneiras, incluindo uma contradição viva de a experienciar". E se dúvidas houver acerca disto, lá está, noutra das paredes, Ultimatum, de Álvaro de Campos: "O maior artista será o que menos se definir e o que escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças."
Pessoa teve contacto com alguns escritores espanhóis e, embora nunca tenha obtido resposta, escreveu a Miguel de Unamuno e enviou-lhe um exemplar da revista Orpheu. Em 1923 traduz-se pela primeira vez um poema de Pessoa para espanhol, mas é nos anos 1980, já com uma antologia publicada pelo também poeta, mexicano, Octavio Paz, que este se torna muito popular em Espanha, contavam Jerónimo Pizarro e António Saez Delgado na exposição Fernando Pessoa em Espanha, na Biblioteca Nacional. Contudo, se hoje não é difícil encontrar livros de Fernando Pessoa nas livrarias de Madrid, muito mais difícil será a tarefa de encontrar quem conheça Sarah Affonso, Amadeo de Souza--Cardoso, Eduardo Viana ou Almada Negreiros. Mesmo que este último se tenha mudado para Madrid nos anos 1920, e ali tenha assinado ilustrações para o espetáculo de lanterna mágica A Tragédia de Doña Ajada, de Salvador Bacarisse, em 1929, ou, no mesmo ano, décors para o Cinema São Carlos de Madrid. Ambos os trabalhos podem ser vistos na exposição ontem inaugurada oficialmente ao final do dia por António Costa e pelo ministro espanhol da Cultura, Íñigo Méndez de Vigo, depois de o seu homólogo português, Luís Filipe Castro Mendes, a ter visitado horas antes, quando ainda não estavam presentes os 50 chapéus de feltro que replicam o de Fernando Pessoa, que o porta quase sempre nas fotografias que dele se conhecem. Feitos pela Fepsa, empresa fundada 1969, em São João da Madeira, por seis industriais da chapelaria, dez deles estarão à venda na loja do museu.
Até Manoel de Oliveira
É a revista Presença, fundada por José Régio em 1927, que aparece como peça determinante para fazer a ponte com aquilo a que historiadora de arte Ana Ara chama "o epílogo desta exposição que não tem ordem cronológica, mas vai-se dirigindo para esta modernidade" que, depois ainda das mortes de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor ou Amadeo de Souza-Cardoso, "acaba com a ditadura de Salazar". Esse epílogo faz-se com Douro, Faina Fluvial (1931), de Manoel de Oliveira. Fernando Pessoa terá guardado o recorte da página com a crítica ao filme que saiu na Presença, conta João Fernandes.
Mas não é Oliveira quem fecha a exposição. Tal tarefa cabe a João César Monteiro com o filme Conserva Acabada, que ali surge logo como diálogo com o filme de João Botelho exibido no começo da exposição, Conversa Acabada, composto pela correspondência trocada entre Pessoa e Sá-Carneiro. No excerto que passa em loop é a satírica e mordaz mão de César Monteiro que, ali representando João Raposão, do Audiovisual, nos acena com Fernando Pessoa feito isco turístico e cultural, com uma jovem Alexandra Lencastre posando na célebre estátua da Brasileira, no Chiado. Como se, chegados ao final da exposição, fôssemos gozados por não nos espantarmos já com quem foi Pessoa, a sua obra, e o universo de que ele é o núcleo. Como se, na ausência de espanto, já sem o ler ou pensar, o entregássemos em forma de pin magnético ou sardinha sem mais. Pessoa. Toda a Arte É Uma Forma de Literatura pode sempre não ser uma novidade apenas para quem não conhece aquele período da história de arte portuguesa.
Pessoa. Toda a arte é uma forma de literatura
Exposição patente no Museu Reina Sofía, em Madrid, até 7 de maio
Bilhetes entre 8 e 15 euros, com descontos