Pescas, concorrência justa e diferendos: os três espinhos nas negociações do pós-Brexit
Houve "algum avanço", foram dados "pequenos passos", o "caminho é estreito" para um acordo, estamos "na última milha" do percurso, "onde há vida há esperança". As negociações entre Reino Unido e União Europeia quanto ao que se seguirá após o final do período de transição pós-Brexit continuam, com os prazos para o fim do diálogo a serem rasgados uma e outra vez à espera de que haja luz ao fundo do túnel.
O prazo final, inamovível, termina às 24.00 de 31 de dezembro, quando o Reino Unido deixar de seguir as regras europeias e, caso não haja acordo, a relação de ambos os lados será feita ao abrigo das regras básicas da Organização Mundial do Comércio - o que na prática implica impostos e taxas sobre as trocas comerciais. E irá piorar o cenário já negro que se vive nas fronteiras, com filas de vários quilómetros para o porto e o túnel do canal da Mancha.
O principal negociador europeu, Michel Barnier, e o negociador britânico, David Frost, continuam a tentar chegar a um acordo que impeça esse cenário, depois de uma reunião no domingo entre o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e a presidente do Conselho Europeu, Ursula von der Leyen. E são três os temas que estão no caminho: pescas, regras para uma concorrência justa e o que fazer quando surgirem diferendos no futuro.
É mesmo o tema mais espinhoso nas negociações sobre a relação futura, apesar de representar uma pequena parte da economia em ambos os lados do canal da Mancha (representa menos de 0,1% da economia britânica e na União Europeia é muito mais importante para a França do que, por exemplo, para a Hungria).
Desde cedo que as pescas foram vistas pelos defensores do Brexit como um símbolo da soberania, já que até agora os britânicos estiveram obrigados a seguir as quotas de pescas impostas por Bruxelas - e sempre se queixaram do que tinham.
Fora da União Europeia, o Reino Unido terá o controlo da sua zona económica exclusiva (até 200 milhas náuticas). E quer negociar anualmente o acesso dos barcos europeus às suas águas - podem pescar anualmente peixe no valor de quase 660 milhões de euros -, assim como as quotas de pesca de cada espécie.
Os 27 querem manter a situação o mais próximo da atual - mais peixe para os britânicos significa, por exemplo, menos peixe para os franceses, com o presidente Emmanuel Macron particularmente determinado a não deixar que isso aconteça - e, especialmente, não ter de estar constantemente a renegociar quotas.
Para complicar as coisas, Bruxelas sempre fez depender o acordo de pescas do acesso aos mercados. Porque a maioria do peixe pescado pelos barcos britânicos acaba por ser exportado (três quartos para a União Europeia) - o mercado do marisco, por exemplo, está totalmente dependente das exportações e pode entrar em colapso se tiver de pagar taxas -, enquanto a maior parte do peixe consumido no Reino Unido é importado.
"Se houver progresso nas pescas, poderemos ter um acordo nos próximos dias", disse um responsável à AFP, sob anonimato. Bruxelas chegou mesmo a propor alargar o prazo para negociar o tema até ao final de 2021, permitindo que a situação continue como atualmente durante mais um ano, mas Londres disse que "nunca aceitaria disposições e o acesso às águas britânicas que são incompatíveis com o seu estatuto de Estado costeiro independente".
Entretanto, o Reino Unido já se está a preparar para um cenário de não acordo, destacando quatro navios de patrulha da Marinha para fazer a vigilância das suas águas.
Independentemente do resultado das negociações, será durante a presidência portuguesa da União Europeia, no primeiro semestre de 2021, que os 27 vão negociar os totais admissíveis de capturas (TAC) deste ano e a aplicação de planos de contingência até final do próximo ano, para manter o acesso às águas não só do Reino Unido, mas também da Noruega.
Este último não faz parte da União Europeia, mas tem um acordo de pescas com o bloco desde 1980 - que tem de ser renegociado. Diante do impasse no acordo entre Londres e Bruxelas, Oslo já disse que fechará também as suas águas a ambos sem um acordo a três até 1 de janeiro. Na zona económica exclusiva da Noruega pesca-se, por exemplo, o bacalhau.
A União Europeia exige que as empresas cumpram uma série de regulamentos, que dizem respeito, por exemplo, aos direitos dos trabalhadores ou a regras ambientais, mas também ao tipo de ajuda financeira que podem receber do Estado. Ao sair do bloco, o Reino Unido terá a liberdade para se libertar dessas regras. E é isso que Bruxelas não quer, já que isso poderia dar uma vantagem às empresas britânicas em matéria de concorrência.
Os 27 não querem que isso aconteça, defendendo que qualquer acordo de livre-comércio tem de exigir condições equitativas para as empresas dos dois lados. Caso isso não aconteça, as empresas britânicas ficam com mais manobra para baixar os padrões, reduzindo os eventuais custos e tornando-se mais atrativos do que as empresas europeias.
Na declaração política, assinada junto com o acordo de Brexit, ambas as partes comprometeram-se a "manter um quadro sólido e abrangente para a concorrência e o controlo dos auxílios estatais que evite distorções indevidas do comércio e da concorrência; comprometer-se com os princípios de boa governação na área da tributação e ao combate às práticas fiscais prejudiciais; e manter os padrões ambientais, sociais e de emprego nos níveis elevados atuais fornecidos pelas normas comuns existentes".
Mas está a ser difícil traduzir isso, já que o Reino Unido defende que o objetivo do Brexit é livrar-se das regras europeias. A negociação prende-se com um mínimo de regras, sendo a principal diferença o facto de a União Europeia querer incluir uma cláusula que defende que se uma das partes elevar os seus padrões, a outra teria de fazer o mesmo.
Em causa está também a questão das ajudas estatais - o Reino Unido sempre foi a favor de este ser um mecanismo à sua disposição.
Alcançado um acordo, é preciso saber o que pode acontecer caso uma das partes o viole - e basta lembrar que Boris Johnson quis violar o acordo de saída que assinou no ano passado, com uma alteração legislativa que iria ter efeitos na Irlanda do Norte no caso de não haver acordo sobre a relação futura (na prática, e para evitar uma fronteira física com a República da Irlanda, este território continuará a seguir as regras do mercado único, passando a haver controlos nos produtos que chegam do resto do Reino Unido).
Na resolução de diferendos futuros, a União Europeia quer que o Tribunal Europeu de Justiça tenha um papel, mas o Reino Unido nem quer ouvir falar disso.
Depois é preciso saber como uma parte pode responder a uma violação dos acordos pela outra parte. Os europeus querem poder retaliar onde mais doer ao Reino Unido - impondo, por exemplo, taxas sobre exportações. Os britânicos poderiam responder na mesma moeda, caso houvesse uma violação do acordo por parte dos 27.
Terá sido neste último aspeto, no mecanismo de solução de diferendos, que segundo Barnier terá havido um princípio de acordo. "Pela primeira vez, o governo britânico aceitou um mecanismo de medidas unilaterais" se surgirem divergências sistémicas. "Mas este mecanismo precisa de ser credível, eficaz e rápido", terá dito num briefing aos embaixadores europeus. "Ainda não chegámos onde queremos, mas houve progressos", disse uma fonte à AFP.
Numa mensagem no Twitter, Barnier disse que os próximos dias serão importantes, e já apontou dois bloqueios. "Concorrência justa e uma solução sustentável para os nossos pescadores são a chave para se alcançar um acordo", escreveu.
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