Pequenos passos no longo caminho para a justiça nas atrocidades na Síria
A recente diminuição nas hostilidades na Síria e o recomeço das negociações em Genebra podem ser passos importantes para alcançar uma solução pacífica para os mais de cinco anos de conflito. Poucos não acolheriam o silenciamento das armas de uma vez por todas e o fim do sofrimento dos civis.
Com crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outros abusos a serem cometidos com impunidade na Síria é essencial que a justiça, a verdade e a reparação constituam parte crucial de qualquer acordo. Aqueles que deram as ordens, que cometeram ou permitiram que fossem cometidos tais crimes têm de ser julgados. Porém, este pilar importantíssimo não está na agenda das negociações de Genebra e há o risco de ser sacrificado por interesses de expedientes políticos.
A inexistência de um tribunal na Síria capaz de dar solução ao défice de justiça é claramente patente. O sistema judicial no país é subserviente às autoridades políticas e às agências de segurança e de serviços secretos. Ao longo dos últimos cinco anos, dezenas de milhares de civis foram detidos sem julgamento, muitos vítimas de desaparecimentos forçados. Milhares morreram sob a tutela das autoridades.
Falha em pôr fim à impunidade
A gravidade e escala dos abusos e da impunidade na Síria ficaram evidentes logo nos primeiros meses. Mesmo assim, o Conselho de Segurança das Nações Unidas falhou, não avançando com investigações do Tribunal Penal Internacional (TPI) - apesar dos repetidos pedidos feitos por organizações internacionais, por pelo menos 65 países e pelo próprio secretário-geral das Nações Unidas. Uma investigação do TPI teria enviado um poderoso aviso a quem ordenou crimes de guerra e também crimes contra a humanidade.
O Conselho de Segurança podia também ter criado um tribunal penal internacional ad hoc, como foi feito com o Ruanda e a Jugoslávia; neste momento esta é uma possibilidade remota. Outra opção seria criar um tribunal penal internacional para a Síria como o da Serra Leoa e do Camboja. É difícil imaginar que tal possa ser feito com eficácia sem o consentimento do governo sírio - cenário para já inconcebível.
Em alternativa, um país vizinho podia consentir que fosse criado um tribunal com essas características no seu território, mas também esta opção é uma perspetiva ilusória uma vez que muitos dos países vizinhos da Síria têm estado envolvidos diretamente no conflito.
Todos estes obstáculos significam que a única hipótese realista de abordar a impunidade é que sejam as autoridades nacionais de outros países a exercerem a jurisdição universal ou outra extraterritorial sobre os crimes previsto na lei internacional - que incluem crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Os países têm o direito e o dever de investigar alegações de que pessoas sob a sua jurisdição podem ter cometido crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou outros graves abusos de direitos humanos.
O fluxo de pessoas em fuga da Síria apresenta novas oportunidades para recolher provas de abusos junto de vítimas e de testemunhas e para investigar e julgar os suspeitos perpetradores. Aqui se incluem pessoas que procuram refúgio e também outras que estão envolvidas em negociações ou negócios. A Amnistia Internacional sustenta firmemente que qualquer pessoa em fuga do conflito da Síria deve receber refúgio.
Primeiros passos
Há 166 países que podem exercer jurisdição universal sobre pelo menos um crime previsto na lei internacional - crimes de guerra - independentemente da nacionalidade do suspeito ou da vítima. Nos meses mais recentes, a Alemanha, a Suécia e a França abriram investigações sobre suspeitos de crimes internacionais cometidos na Síria.
Em janeiro, um sírio foi detido na Alemanha sob suspeita de crimes de guerra no caso do rapto de um observador das Nações Unidas na Síria. Na Suécia, um requerente de asilo sírio foi levado a tribunal sob acusações criminais por suspeito envolvimento na morte de soldados sírios capturados. E em França, um requerente de asilo está a ser investigado por alegada participação na tortura e morte de vários opositores do governo sírio.
Estes passos da comunidade internacional são pequenos mas também profundamente significativos na tomada da direção certa. Os crimes a que reportam e as pessoas afetadas quase desaparecem, porém, perante a escala colossal das violações e da impunidade na Síria.
Há dúvidas de que os suspeitos do lado do governo sírio - cujas forças são responsáveis pela esmagadora maioria das graves violações de direitos humanos - viajem para fora do país. Mas também isso pode mudar. E os países com capacidade e compromisso em fazer investigações e julgamentos devem certificar-se de que estão preparados para agir quando isso acontecer.
No contexto atual, a enormidade da injustiça e impunidade que reinam na Síria ditam que o caminho para a justiça, para a verdade e para a reparação tem de começar em algum lugar e, assim, quaisquer oportunidades que surjam têm de ser agarradas e consolidadas.
Este artigo foi publicado originalmente na Jurist