"Pensei daqui a 30 anos fazer um filme sobre uma espécie de Jesus Cristo rapper, negro"
"Nasci a 1 de novembro de 1979. BI: 11318772." Karlon, o rapper, di-lo em Altas Cidades de Ossadas, a nova curta-metragem de João Salaviza. De onde estamos, avista-se, para lá dos prédios, o sítio onde o filme foi rodado: um vale verde. São 10.30 no Moinho das Rolas, em Porto Salvo, o bairro onde muitos, como Karlon Krioulo, foram realojados antes da destruição da Pedreira dos Húngaros em 2002, onde moravam homens que passavam o dia a trabalhar nas obras, a construir casas que as suas mulheres depois haveriam de limpar, e à noite voltavam para uma barraca. "Os nossos pais construíram quase todos os prédios aqui em Portugal", diz ele, filho de cabo-verdianos, educado entre funaná, mornas, e a voz quente de Bonga .
Karlon - Carlos Furtado no BI - estará no próximo dia 14 no Festival de Cinema de Berlim, que começa na quinta-feira, para assistir ao filme que protagoniza. "O Salaviza moldou-me bastante, porque ele sabe que eu tenho pilhas Duracel. E gostei, porque às vezes há coisas dentro de nós, e nós não conseguimos chegar lá. O Salaviza conseguiu chegar lá dentro de mim. Ele viu uma coisa que eu não via dentro de mim: a calma, a concentração, a meditação, estares em contacto com a Natureza", conta o rapper.
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Salaviza, que a esta hora estará no Brasil a rodar Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, o seu próximo filme - correalizado com a companheira Renée Nader -, voltará à Berlinale, onde em 2012 recebeu o Urso de Ouro com a curta Rafa, depois de vencer a Palma de Ouro em Cannes com Arena, em 2009. Encontramo-lo numa paragem por Lisboa, antes de voltar para o povo indígena, os Krahô, que está a filmar. Conta que conheceu Karlon no projeto coletivo URB, que deverá resultar numa série filmada nos bairros da Grande Lisboa. Não estava previsto filmar o rapper. Mas ele começou a falar de cinema brasileiro à Renée, e a contar histórias da Pedreira dos Húngaros a João. Ficaram amigos.
No começo, o realizador queria "tentar perceber esta espécie de arqueologia das cidades que existe - daí o título. Os prédios vão sendo construídos sobre camadas de sítios onde eventualmente viveram outras pessoas. Queria muito fazer um filme que explorasse a relação entre o bairro, os prédios, e o lado mais rural, que é aquele vale onde há uma horta comunitária - e quem cuida dela são principalmente os emigrantes de primeira geração, que continuam a ter cana de açúcar, milho, a preparar o grogue..."
Depois apareceu Karlon. E Salaviza conheceu "os tipos de segunda geração como ele, que já nasceram na Pedreira dos Húngaros, e que viveram este processo de transição de um bairro onde havia laços comunitários muito mais fortes, para os prédios". Estão entre os pais, que deixaram o país que muitos deles nunca conheceram, e os seus próprios filhos, que já nem falam crioulo, e para quem a habitação nunca foi um problema. No filme Karlon foge. Refugia-se no vale, entre o verde e as canas, numa cabana onde, como numa catacumba, o ouvimos em rap (kata para kata para, diz ele, não para, e fica-nos na cabeça).
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"Ele movimenta-se na penumbra. Tivemos vontade que o filme remetesse para este lado meio clandestino dos primórdios do rap. Este universo ainda existe, principalmente no rap underground, onde o Karlon conscientemente quis regressar com a sua carreira: música feita no bairro. Achei muito forte. Aliás, pensei daqui a 30 anos fazer um filme sobre uma espécie de Jesus Cristo rapper, um Jesus Cristo negro. Há no rap esta coisa meio profética da palavra e de falar mesmo quando ninguém ouve." E de salvação. "Sim", continua, "é uma saída, também. Ele vive do rap."
A porta do vizinho fechou-se
Em Altas Cidades de Ossadas, Karlon é e não é ele mesmo. Se por um lado ele, sentado numa mesa de café, não queria voltar à Pedreira, ao contrário do Karlon do filme, por outro lado explica: "O João mixou as minhas histórias. Eu tenho psicose múltipla, sou seguido por psiquiatras, com medicação fico bem. Ele juntou esse mundo da psiquiatria com o mundo real. Aquele sou eu quando estou em estado paranoico, em transe, em ligação com os deuses, ou como queiras interpretar. Volto ao passado ou vou ao futuro."
Mas é verdade, diz, que se perdeu "a comunidade e irmandade" que havia no bairro antigo. "Já não é aquela coisa de porta aberta, de ligar só para dizer "Então estas boa?"" Já não há lugar sempre para mais um à mesa ou em casa. "Hoje nos prédios é que se passa fome. As pessoas estão com a porta fechada, com medo de mostrar que estão a passar mal. São as mesmas pessoas, mas nos prédios tem aquela coisa: "Não quero saber, estou no meu cantinho." Há desconfiança..."
O crioulo está no centro do filme. "Não apenas por ele ser rapper, mas porque eu queria muito filmar a afirmação negra, cabo-verdiana, através da língua", explica o realizador, que aponta o filme O Sabor da Cereja (1997), do iraniano Abbas Kiarostami, "em que há três personagens que tipificam alguma coisa e que conversam com o protagonista durante o filme", como paralelo. Ali é a mãe de Karlon (Maria do Céu Magalhães), que lhe pede para voltar para casa, agora que já não há balas no teto, e a quem ele responde que não falam o mesmo crioulo. Há depois Nono (Leonor Ferreira), que lhe pede para voltar para casa em português, a língua que conhece, e que nunca viveu noutra casa. E ainda Xama, também rapper, companheiro na língua e na geração.
Foram os rappers como Karlon que trouxeram o crioulo para a luz do dia. "Os nossos pais diziam: "Tu cantas em crioulo, larga isso, não é vida para ti." Hoje veem os nossos vídeos na RTP África, já dou concertos, veem que eu comprei uma casa, que tenho uma vida normal. Começam a ver aquilo em que acreditávamos de outra maneira. Não temos de continuar a trabalhar nas obras, casa de limpeza, os nossos pais viviam com medo da comunidade branca. Agora vivo sem medo, estás a ver? Sou piloto da minha nave." As palavras não vêm em rajadas cortantes, como no rap, mas calmamente, em conversa.
Foi para não acabar nas obras, recorda, que foi estudar para a Escola de Artes e Ofícios do Espetáculo do Chapitô. Mas hoje ainda há muito por fazer. "Tenho o objetivo de um dia ter uma vivenda e conseguir vencer na vida, fazer uma coisa que os nossos pais não conseguiram na Europa. Tenho esse sonho e trabalho duro para isso." Karlon acaba de lançar o álbum Passaporti, o seu quarto álbum a solo depois dos anos nos Nigga Poison. Nunca antes fora tão longe nas suas raízes cabo-verdianas. O homem que se vê na capa, aliás, é o seu avô, na ilha de Santiago. Tirou a fotografia do arquivo de família da mãe, e também ela aparece na contracapa, criança. Agora, diz, vai "cavar ainda mais fundo: trazer histórias que nem eu sei, coisas dos cotas..."
O mundo projetado nos olhos dele
Perguntamos a Salaviza o que o fez querer filmar o Karlon. Além de ser um ângulo para abordar a história desta segunda geração a que pertence o rapper. Ele estava exausto, entre a pós-produção desta curta-metragem e o voo que o levaria ao Brasil para retomar o projeto que tem estreia marcada para 2018. Mas responde. "Se eu pensar que a geração dos meus pais, que viveram o 25 de abril, tem uma relação muito forte com esse período, com o momento determinante em que sentiram que podiam mudar o rumo das suas vidas e do país inteiro... Sendo de uma geração muto despolitizada [é cinco anos mais novo do que Karlon], acho que fiquei particularmente tocado por ver um rapper com uma consciência social e política tão forte e tão consistente."
Salaviza não perdeu o ar de miúdo com que muitos o conheceram quando o viram vencer em Cannes, e com que o vimos ainda no ano passado, com Montanha, a sua primeira longa-metragem, onde voltou ao tema da adolescência e a filmou como gente crescida, com a distância e a proximidade suficientes para chegar àquela cena em que David Mourato dança de olhos fechados: na luz entre a penumbra. Sobre o trabalho feito com Karlon como ator, e lembrando a performatividade que um rapper já carrega, Salaviza responde: "O olhar dele é fortíssimo. Nós trabalhámos imenso essa questão: como é que o mundo se projeta nos olhos dele. Porque de alguma forma não vemos muita coisa. Há poucos elementos palpáveis no filme. É como se uma construção qualquer muito maior se refletisse no olhar dele, no corpo e na gestualidade."
Renée, Karlon, e João assinam o guião. Ele diz: "A estrutura narrativa do filme se calhar segue um bocadinho esta ideia do hip hop enquanto apropriação e reprodução: a ideia de colagem, de samples, de citações de outros poetas ou outros rappers. O filme é uma espécie de tapeçaria de histórias recolhidas, partilhadas, ou desenterradas no bairro, de momentos marcantes na vida das pessoas que filmei, de factos históricos - quando ele fala do presidente que está preso está a referir-se obviamente ao Isaltino Morais."
E assim Salaviza filmou um rap, negro, vindo das catacumbas. E de onde, no final, à luz do dia, aparece um cavalo branco, vindo do campo para os prédios. O caminho oposto ao de Karlon. E, ao contrário da pomba no final de Arena, não foi acidental.