Pensar a guerra a desmontar e a remontar um homem
Um dia, o estivador Galy Gay sai de casa para comprar um peixe. Desviado até ao acampamento militar, aí se lhe depara a procura de substituto para um soldado desaparecido - que, combinada com a sua atracção pelos negócios, o fará soldado, em processo sinuoso no qual vai tornar-se uma máquina de guerra. Eis, em síntese, do que trata Um Homem É Um Homem (1925, primeira versão), comédia actualíssima de Bertolt Brecht (1898-1956), que a Cornucópia estreia amanhã em Lisboa, incluindo o entremez A Cria do Elefante. Com canções de Paul Dessau, arranjadas por João Paulo Santos, que o pianista Nuno Lopes interpreta, vestido de soldado como os actores (Cristina Reis assina figurinos e cenário).
Mas, muito mais interessante do que 'o quê' desta ambígua peça inaugural do teatro épico de B. B. (embora a última versão e agora encenada seja de 1953), é 'o como' duma comédia que, cumprindo o brechtiano preceito de divertir e advertir no mesmo passo, faz pensar em tragédia, recheada embora de cenas burlescas, perto do cinema mudo de Chaplin (filmes seus foram vistos na preparação) e de Buster Keaton, ocorrendo-nos logo Charlot nas Trincheiras.
No prodígio de nonsense que é o entremez A Cria do Elefante, "um texto cheio de humor sobre o teatro e a renovação teatral que Brecht estava a fazer", realça o encenador Luís Miguel Cintra a influência, ainda, do teatro de Karl Valentin (autor, por exemplo, do popular E Não Se Pode Exterminá--lo?, que a Cornucópia também fez, nos anos 70).
Quanto a Um Homem É Um Homem, qual o sentido da metamorfose do estivador Galy Gay (interpretado aqui por Dinarte Branco) em soldado do exército colonial britânico, feito máquina de guerra num Oriente de fábula? Segundo o encenador, "Brecht sempre insistiu que era positiva a capacidade de transformação e de não fugir ao curso da História, considerando é que havia bons e maus colectivos". No programa, escreveu Luís Miguel Cintra "Galy Gay é também Everyman(...). A transformação de Galy Gay são os tempos a mudarem em tempo de guerras, e o homem a mudar com o tempo (...)." Sobre a ambiguidade do texto, o director da Cornucópia sublinha "Conforme o momento político que estava a viver, Brecht sentiu necessidade de pôr ou tirar as duas cenas finais, onde se vê que Galy Gay se transforma num monstro. Por isso achei que era de fazê-las agora."
Justamente agora, "pelo momento que se vive, das Torres Gémeas à Guerra do Iraque, com tudo o que se passa no mundo", esclarece Luís Miguel Cintra, justificando também o regresso da companhia a Brecht, três décadas após Terror e Miséria no III Reich (1974) e Tambores na Noite (1976), além duma genérica "vontade de teatro político" "Sempre gostei muito desta peça e apeteceu-me voltar a Brecht nesta época de globalização, uniformização e alienação. E é disso que a peça trata: numa guerra, com milhares de soldados, ninguém pergunta porque existe ela, como se fosse um destino-"
Como principal problema equacionado no texto - percorrido por visão mordaz da sedução pelos negócios em geral, do negócio das religiões em particular ou do racismo -, o encenador acentua "a relação do indivíduo com o colectivo normalizador." O que podemos exemplificar em frases assim "Uma pessoa não é ninguém. Se não forem mais de 200 pessoas, nem vale a pena falar." (soldado Uria/Ricardo Aibéo); "(...) sou um homem que não sabe quem é." (Galy Gay).
O director faz questão de salientar que este espectáculo é uma criação "de grupo", mais ainda do que é característico da companhia, "pelo entusiasmo dos actores e pelo trabalho que a peça dá a perceber a cada passo, perguntava-se 'Que comportamento é este?', com os actores a encontrarem soluções". Na distanciada estética brechtiana, naturalmente. Isto é, sem sombra de naturalidade. O que equivale também a ser "contra as regras do actual mercado", considera Luís Miguel Cintra.
No programa, refere "um tribunal filosofado. Na companhia de um poeta que nunca perde o barco uma cantineira que já viu tudo e canta com o olhar da História e não larga os soldados pelos séculos fora, atrelada a todos os comboios". Essa é a viúva Leocádia Begbick, com uma interpretação antológica de Maria João Luís, entre uma dúzia de actores habituais na Cornucópia.
Um Homem É Um Homem fica no Teatro do Bairro Alto até 22 de Maio (terça a sábado, 21.00; domingos, 16.00); seguem-se A Cadeira, uma das últimas peças do britânico Edward Bond, e Sangue no Pescoço do Gato, de R. W. Fassbinder. Peça e entremês, em traduções de António Conde (versão de 1938, para o Cendrev) e de José Maria Vieira Mendes, respectivamente, integram o recente Teatro 2 de Brecht (Livros Cotovia).