Penha de França. Piscina mete água mas ninguém lá pode nadar. O engenheiro da obra que afinal não é
Desde novembro de 2016 que os moradores da Penha de França deveriam poder usar a piscina municipal, que está a ser reabilitada depois de ter fechado em 2011. Deveriam mas não podem, pois a água que está dentro da piscina é pouca e à volta falta ainda acabar caleiras, tanque de compensação, colocar os blocos de partida e remodelar a zona da secretaria.
A história da reabilitação desta infraestrutura é quase um romance: além da inauguração, que nunca mais acontece, envolve a quase falência do Estrelas de São João de Brito, clube que diz já ter despedido 18 funcionários e encerrado o principal escalão de natação; e ainda um engenheiro que surge nos documentos relacionados com a obra como responsável pela direção técnica mas que não está inscrito na Ordem. E até é alvo de um processo entregue no Ministério Público por falsificação de assinatura e usurpação de direitos profissionais.
A novela em torno desta piscina - as obras tinham um orçamento de 775 mil euros - começa em 2013, ano em que foi celebrado um protocolo entre o clube e a Câmara Municipal de Lisboa, depois da intervenção do Tribunal de Contas e de uma alteração do projeto foi feita uma adenda ao acordo, o qual passou a incluir três entidades: clube, autarquia e junta de Freguesia da Penha de França. Manteve-se o pagamento assumido pela câmara e o prazo de vigência do compromisso passou de 12 anos (renovável automaticamente por períodos de cinco anos) para quatro (renovável por um período único de três anos).
Ficou então previsto que a inauguração da obra deveria acontecer em novembro de 2016. Porém, chegada a data nada aconteceu. Na altura, o Estrelas de São João de Brito acusou a empresa contratada (Tanagra Empreiteiros) de estar a entregar uma obra com defeitos - por exemplo, tem infiltrações e o chão da piscina não está feito de modo a que ao ser esvaziada a água escoe - e não regularizou as verbas que faltavam pagar.
Tudo isto levou a um esclarecimento, em março de 2017, por parte da Junta de Freguesia da Penha de França, que cortou o fornecimento de eletricidade à piscina e lançou dúvidas sobre a fiscalização feita à obra. O DN tentou, até agora sem sucesso, contactar a junta por telefone e por e-mail.
A adensar a polémica à volta desta obra está o facto de o funcionário da empresa contratada para reabilitar a piscina - que entretanto foi dispensada pelo clube - indicado como o engenheiro responsável pela direção técnica da empreitada não ser engenheiro, apesar de surgir nos documentos com esse título. O que não é caso único nesta empreitada da Penha de França.
Isso mesmo foi confirmado ao DN pela Ordem dos Engenheiros, com o bastonário a garantir que a pessoa em questão "falsificou declarações. Desconhecemos que habilitações tem". Carlos Mineiro Aires adiantou que já foi apresentada no Ministério Público uma queixa. "No início deste ano recebemos uma denúncia e na altura averiguámos e descobrimos que este senhor, além de se intitular engenheiro civil, tem declarações da Ordem que ele falsificou. E a empresa foi avisada a 31 de janeiro do que se estava a passar."
Questionada pelo DN, a empresa não comenta. "A Tanagra não tem conhecimento de que qualquer um dos diretores técnicos de obra por si designados não esteja devidamente habilitado para o desempenho dessas funções", respondeu por escrito.
As dúvidas sobre as habilitações dos alegados engenheiros surgem também quando se fala da representante da segurança. Também esta surge nos documentos identificada como engenheira mas não está inscrita, tal como o outro funcionário, nem na Ordem dos Engenheiros nem na dos Engenheiros Técnicos.
"Ele [diretor técnico] não pode exercer a direção técnica. Ninguém lhe reconhece as competências", adiantou Carlos Mineiro Aires. O bastonário garantiu ter provas da existência de falsificação de documentos: "Já informámos que o indivíduo falsificou declarações de forma grosseira. Nos documentos apresenta datas e cargos de quem os assina que não são reais. No meu caso apresenta uma assinatura como eu sendo presidente do conselho diretivo sul numa altura em que já era bastonário. Em outro caso a declaração refere-se a uma engenheira."
"Está a exercer a profissão indevidamente. E o que me preocupa é que a empresa continue a trabalhar com ele", concluiu.
Perante esta denúncia, o DN pediu um comentário à autarquia que respondeu o seguinte: "A Câmara Municipal de Lisboa celebrou com o Clube Estrelas de São João de Brito um contrato de concessão e exploração da piscina da Penha de França e foi esta entidade que adjudicou ao empreiteiro a execução dos trabalhos. Neste quadro, não cabe à CML a análise do processo da obra."
Perante a paragem das obras e o acumular de atrasos que o presidente do Estrelas de São João de Brito imputa à câmara e à construtora - a primeira por não efetuar as transferências de verbas acordadas e a segunda por ter deixado a obra mal feita, o que vai levar a que seja feita uma nova intervenção -, a autarquia deu nesta quarta-feira explicações sobre o assunto.
Questionado pelo vereador do CDS-PP João Gonçalves Pereira, o vice-presidente da câmara Duarte Cordeiro disse que este é um "tema complicado, difícil e que exige cuidado, pois queremos preservar a continuidade da atividade do clube". Explicou ainda que a "Câmara Municipal de Lisboa celebrou um contrato para que o clube realizasse obras de reabilitação da piscina. Houve uma primeira versão e mais tarde, no anterior mandato, foi feita uma renegociação em que o risco foi transferido quase todo para o clube, ou seja, os trabalhos a mais são da responsabilidade do clube."
Depois do enquadramento, Duarte Cordeiro referiu que a autarquia tinha detetado "que entre as transferências que fazia para o clube e as transferências que este fazia para o empreiteiro, mesmo considerando os trabalhos a mais, havia discrepâncias suficientes para se fazer uma auditoria". Que está a decorrer.
Salientou que a câmara foi "adiantando apoio ao clube que estava com problemas de tesouraria" e que equaciona a hipótese de assumir "os trabalhos a mais e aí fazemos um novo contrato". Mas também acrescentou ter a convicção de "que não é suficiente", ou seja, a solução para este impasse pode passar pela "rescisão do contrato".
Que é o que Nuno Lopes, presidente do clube, diz ser o objetivo dos atrasos nos pagamentos. "Têm 250 mil euros em atraso e para pagar o resto da obra são necessários mais 185 mil", diz ao DN. "A câmara defende o empreiteiro. A empresa [Tanagra] em março/abril reconheceu que não cumpriu o projeto", frisou.
Em resposta, a empresa defendeu: "Como consta da Ata n.º 38, de 11 de janeiro de 2017, subscrita pela Tanagra e o dono da obra, o único trabalho relativamente ao qual foi apresentada reclamação respeitava à existência de infiltrações na zona dos blocos de partida na cuba da piscina. Em 17 de janeiro de 2017, a Tanagra apresentou e executou Plano de Trabalhos com vista à remoção das infiltrações, devidas à deficiente impermeabilização. No decorrer do mês de junho de 2018, foi iniciada uma peritagem à impermeabilização da piscina a pedido da Câmara Municipal de Lisboa, cujo resultado a Tanagra desconhece."
Nuno Lopes garantiu ao DN que o clube vai avançar para tribunal para tentar receber as verbas a que considera ter direito e contesta o facto de a autarquia dizer que vai aguardar pelo resultado da auditoria para tomar uma decisão. "Lamentamos, mas a partir do dia 6 vamos para processo judicial, que vai envolver que a piscina fique parada durante os próximos 2/3 anos e os 185 mil euros que custa hoje corrigir os trabalhos vão custar 3/4 vezes mais", disse. Acrescentando que não houve trabalhos a mais como alega a câmara, mas sim "trabalhos imprescindíveis. E temos provas, atas e aprovação dos autos".
O presidente do Estrelas de São João de Brito lamenta o impacto que este processo já teve no clube, pois já foram despedidas 18 pessoas e a equipa principal de natação - que iria aproveitar o complexo de piscinas onde está a ser construída uma zona para alojar quatro atletas - ter sido desmantelada. Aliás, a sua principal estrela, a nadadora de origem russa Victoria Kaminskaya, naturalizada portuguesa e que nos Jogos Olímpicos do Rio se tornou a terceira representante de Portugal na natação, já foi contratada pelo Benfica.
Notícia atualizada às 18:20