Pelo Natal e pela Turquia

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Há por cá muita gente a manifestar-se nestes dias pelo Natal e contra a Turquia, e alguma, menos, contra os festejos de Natal e pela Turquia. Também existe a corrente dos que são contra o Natal e contra a Turquia. Pois assumo-me pelo Natal e pela Turquia.

Festejo a quadra natalícia no seio de uma família maioritariamente agnóstica com forte tendência ateísta. Todos os anos lá está a árvore de Natal artificial e os contornos de um presépio onde tanto sobressaem Jesus, Maria e José como os reis magos, cuja modéstia sempre apreciei. Uma pessoa amiga, católica, ofereceu-me uma linda peça artesanal da Oficina da Terra de Évora com as figuras todas no mesmo plano e na vertical, que embeleza o ambiente e fica exposta. Como tenho uma neta com três anos de idade, o Pai Natal está omnipresente sem ser omnipotente. Aqui em casa ninguém se esforça para lhe fazer compreender que o Pai Natal não existe. A criança chegará cedo de mais a essa conclusão por si própria e passará a acreditar noutras coisas que também não existem, já na idade da razão, o que de certa maneira é muito pior.

Por quantas ideias efémeras ou erróneas ela não passará pela vida fora, sem que os adultos se dêem conta do artificialismo delas?

Para já, ela rebola-se de prazer pela casa fora...

É verdade que estamos à mercê de algum arrependimento divino sobre as suas próprias criações como o Livro do Génesis nos relata.

Agora querem-nos fazer crer que a festa do Natal está em perigo nos antigos reinos visigóticos e mesmo no novo mundo protestante, à mercê de um avassalador, porém temeroso, movimento do "politicamente correcto" que estaria a apostatar os feriados religiosos afeiçoados pela civilização cristã e ocidental.

Não vejo que o Natal esteja em perigo nas nossas sociedades e seria o primeiro a considerar descabido querer retirá-lo da praça pública. Coisa diferente será permitir, naqueles países onde existam representativas comunidades que professem outras religiões, o estabelecimento de um feriado anual para as suas celebrações, como em França já foi proposto. A anulação de qualquer feriado religioso parece-me mais empobrecedor do que a sua extensão a mais dois ou três cultos. Sou por uma Europa laica mas pluriconfessional.

Eu que sou laico gosto dos nossos feriados políticos: 25 de Abril, 1 de Maio, 10 de Junho, 5 de Outubro e 1 de Dezembro. Considero o 25 de Dezembro intocável, pela carga simbólica e afectiva que transporta. Compreendo historicamente o 8 de Dezembro, mais pelo lado brigantino do que pelo lado do culto mariano, cuja dogmática envolvente pertence à Igreja. Se as comunidades religiosas decidissem, tendo em conta critérios de fé, quem não trocaria em Portugal o 8 de Dezembro pelo 13 de Maio? Por aqui se vê como os critérios das manifestações de fé não são os critérios da Concordata. Os feriados religiosos em Portugal como o 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, e o móvel do dia do Corpo de Deus destinam-se mais a diferenciar o terreno entre países de culto católico e países de culto protestante, do que a demarcar o catolicismo do islamismo e do judaísmo, por exemplo. Mas, enquanto em Portugal o Estado está obrigado aos feriados religiosos pela Concordata em vigor, outros Estados já dispõem de maior margem de manobra para flexibilizarem o calendário. Sobre este assunto os nossos intelectuais da coragem cívica têm-se remetido a um complacente silêncio...

Se sou pelo Natal na praça pública, também sou pela entrada da Turquia da União Europeia.

Sou pela entrada da Turquia na UE por variadas razões, e não escondo que uma delas é patentear esta como pluriconfessional, para terminar assim com o ciclo das conversões dos bárbaros e das modernas guerras religiosas entre convertidos.

Sou por uma União Europeia fundada numa série de contratos políticos, que até agora se têm chamado Tratados, e cuja passagem para outro nível contratual como o constitucional requer particular cuidado na protecção dos direitos das minorias estatais e comunitárias de que ninguém fala. Por isso sou contra a noção de povo europeu como legitimador da UE.

Por outro lado, a Turquia construída politicamente por Kemal Attaturk emancipou-se do império otomano e do califado, laicizou-se, adoptou o alfabeto latino, tem servido de espaço de articulação seguro entre vários mundos. Fazer de um espaço de articulação uma fronteira seria um erro trágico até para se poder celebrar o Natal em paz entre os homens de boa vontade.

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