Pela Alemanha de Merkel 

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A Porta de Brandeburgo enquadra o tabuleiro com as embaixadas americana, francesa e russa. Não muito longe, a representação da Hungria ergue a sua bandeira, numa metáfora do que rodeia a Alemanha. Só falta a chinesa para fazer o pleno dos assuntos que pressionam Berlim. A expectativa de fora é alta: vai a Alemanha exercer um papel mais ambicioso no exterior? Quer Berlim normalizar-se após décadas de contenção forçada, expondo uma agenda alemã na resolução das crises circundantes à Europa? É Merkel timoneira para isso? A resposta às três questões é a mesma: não. Há razões para tal.

Mesmo que a expectativa seja muita sobre o exercício de uma hegemonia alemã assumida (para muitos maquiavélica) na Europa - num quadro de saída do Reino Unido, inexperiência de Macron e falta de confiança em Trump -, não há nada que esteja mais fora dos objetivos de Berlim. A Alemanha não fechou ainda o círculo de contenção do pós-Guerra nem sequer garantiu a coesão interna depois de 1989, capaz de transformar mentalmente o Leste do país numa postura internacionalista proativa. Pelo contrário: os números impressionantes que o Die Linke e a AfD aí terão espelham uma versão facciosamente virada para dentro, profundamente identitária, saudosista, alinhada com Moscovo e jamais com Bruxelas. A Alemanha que sairá destas eleições não tem qualquer intenção de corresponder às expectativas daqueles que a querem ver liderar o "mundo livre" em substituição dos EUA.

Isto não significa que não exista uma grelha de interesses internacionais que encaixa no interesse nacional alemão. À cabeça, a UE. A continentalização da política europeia como efeito direto do brexit força os dois grandes a assumirem responsabilidades. Merkel fará tudo para que o presidente francês tenha sucesso nos mesmos anos em que também, previsivelmente, voltará a governar a Alemanha, sob pena de a seguir vir Le Pen. Para tal, parece disponível para ir ao encontro de algumas propostas do Eliseu (orçamento da zona euro, ministro das Finanças, harmonização fiscal para empresas, fundo monetário europeu), mas nem a veracidade dessa vontade é clara, nem o calendário foi alguma vez enunciado, nem existe um consenso mínimo interno capaz de acelerar essa aparente predisposição reformista da chanceler. O discurso que Macron fará depois de amanhã sobre este tema porá uma pressão excessiva em Berlim que certamente não agrada a Merkel. Apesar de lidar bem com a pressão, está longe de ser uma reformista visionária com ambição de deixar um legado como Adenauer, Brandt ou Kohl. Merkel é muito mais uma boa gestora de condomínio do que a brilhante arquiteta que vai mudar o bairro.

A chanceler vai a caminho do quarto mandato, nenhum deles com maioria absoluta, todos a exigir uma gestão hiperpragmática constante. Durante estes doze anos, o Japão teve sete primeiros-ministros, a França quatro presidentes e os EUA, três. Mais do que previsibilidade, Merkel tem oferecido estabilidade na execução das grandes reformas estruturais aprovadas por Schröeder em 2003, tem garantido constância na aceleração económica e no emprego (mesmo que a precariedade se tenha imposto), e sobretudo um bom julgamento nas crises que enfrentou. Nas várias conversas que tive nesta semana em Berlim, ficou claro que é isto que os alemães, de uma forma geral, valorizam: uma fuga constante do risco, uma decisora firme, uma geradora de pontes, uma política com hábitos sóbrios.

Apesar de reflexiva, Merkel tem sido uma gestora de crises. Os alemães apreciaram a sua alteração repentina sobre a política nuclear depois de Fukushima, a difícil consonância entre o interesse alemão e o interesse comunitário durante a crise das dívidas, e sobretudo a posição de firmeza no auge da chegada de refugiados, mesmo sabendo que abriria a porta à AfD. A reviravolta recente deu-se no início do verão, depois de o SPD ter saído da convenção com uma das poucas bandeiras que o separavam de Merkel: a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Durou pouco: a chanceler, noutra virada que esvazia agendas alheias, fez aprovar a lei em tempo recorde, dando conta do seu voto contra e antecipando um apoio social que poderia causar atrito nas eleições. Dessa forma, secou propostas adversárias, tomou-as como suas, levando a campanha para estilos de liderança onde sabe que é, até ver, imbatível. Isto não quer dizer que a eleição não tenha efeitos relevantes na Alemanha e na Europa.

A primeira é a chegada da AfD ao Bundestag, arrastando consigo muitos conservadores descontentes com o centrismo de Merkel, xenófobos militantes, saudosistas de Leste, odiosos da União Europeia, admiradores de Putin e todos os que estão dessincronizados da Agenda 2010. A entrada no Parlamento é o maior choque tectónico na política alemã do pós-Guerra, com margem de crescimento se CDU e SPD se confundirem ad eternum.

A segunda é o resultado do SPD. Se Schulz tiver menos de 23%, 22%, fica muito frágil para se impor noutra coligação e garantir pastas como as Finanças ou autonomia nos Negócios Estrangeiros, além de abrir o debate interno sobre a delapidação ideológica como parceiro júnior. Mesmo que cheguem a acordo, não será uma coligação coesa e tanto a direita na CDU como a esquerda no SPD farão ouvir a sua dissonância. Já uma solução entre CDU, FDP e Verdes será sempre disfuncional e internamente concorrencial, sobretudo nas reformas da zona euro.

A questão alemã reaberta nesta eleição é, assim, dupla: o futuro do euro (e da União Europeia) exige uma liderança alemã que é culturalmente relutante e o passeio eleitoral de Merkel só aparentemente traz estabilidade. A Alemanha continua assoberbada pelos seus paradoxos.

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