Pedro Pinho, cineasta operário e herói improvável de Cannes

Passámos a ter um novo cineasta no mapa internacional. Pedro Pinho, do coletivo Terratreme, o realizador da saga social A Fábrica de nada, vencedor em Cannes. História de um percurso de um espírito inquieto que começou na dança e chegou a ocupar casas. E agora apresenta coreografias numa fábrica vazia
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Quem esteve no Festival Cannes na sessão já mítica de A Fábrica de nada, na Quinzena dos Realizadores, percebeu que estava ali a nascer um novo clássico do cinema português. Os aplausos emocionados e, posteriormente, o consenso da crítica e o prémio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci) ajudaram a que o filme de Pedro Pinho tenha saído de Cannes como a verdadeira coqueluche do festival.

Pedro Pinho, o operário mor deste objeto estranho não identificado e feito de forma coletiva pelos cineastas "operários" da Terratreme, não era um cineasta propriamente com visibilidade do mainstream. Aos 40 anos, é, porém, alguém com uma obra já com algumas credenciais no circuito internacional. Um artesão que tem ido do documentário à ficção com uma desenvoltura notável, passando também pelo trabalho como diretor de fotografia. Um Fim do Mundo, bela incursão no mundo íntimo dos jovens de um bairro de Setúbal, a Bela Vista, passou algo despercebido nos cinemas em 2013, enquanto os documentários Bad Sebta e A Cidade e as Trocas, correalizados respetivamente com Frederico Lobo e Luís Homem, fizeram sobretudo furor nos festivais.

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Agora, depois de Cannes, está nas bocas do mundo: "A ficha ainda não me caiu totalmente", diz com um sorriso envergonhado. "Percebi lá em Cannes que já estava a haver um bocado de sururu mesmo antes da estreia. As pessoas perguntavam o que está ali a fazer esse filme selecionado à última hora e por que razão a Memento, importante distribuidor internacional, se tinha associado ao filme. Havia uma expectativa! Depois da estreia começam as críticas surpreendentes. Foi um bocado uma vertigem... Ao fim e ao cabo esta era uma proposta muito arriscada."

Pinho tem toda a razão, mas é no risco que está o ganho. Três horas de duração, filme que mistura atores e não atores, mergulho fundo na crise de operários portugueses e mistura com musical. A Fábrica de nada não se parece com nada, mas é precisamente nessa caldeirada que encontra o seu graal. A vitória passa também pelo facto de já estar convidado para os mais importantes festivais internacionais e ter já garantido estreia no Brasil, França, Formosa, Espanha, Suíça, China, Chile e Argentina. Em Portugal, poderá estrear-se em meados de setembro.

Neste cinema de ensaio e procura, Pinho está sempre do lado da verdade, mas também diz estar cansado das fronteiras entre o que é real e o que é ficção. O seu filme parece ser precisamente um valente manguito à própria questão. Dizemos-lhe que o cinema português poderá ter encontrado essa inclinação selvagem de novo neorrealismo desde No Quarto da Vanda, de Pedro Costa, há 17 anos. Pinho parece concordar: "No fundo, somos todos filhos do Pedro Costa." Uma geração que hoje se tornou um movimento. Lá fora, o cinema português de autor, de monocasta ou não, é o ai-jesus dos programadores internacionais, tal como há uns anos eram o cinema iraniano e, depois, o romeno.

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Mas, curiosamente, Pedro Pinho não teve o percurso típico de realizador. Quando estava no Conservatório de Dança, mesmo ao lado do Conservatório de Cinema, percebeu que não queria ser bailarino nem coreógrafo, mas sim realizador, sobretudo depois de ser usado como ator nas curtas dos finalistas de cinema. Logo a seguir à dança, passou para o curso de Filosofia, tendo depois viajado e feito parte de "grupos de pessoal que ocupa casas". Só aos 22 anos tentou a Escola de Cinema e foi aceite. Perdeu-se um okupa, ganhou-se um cineasta do real: "Numa fase em que estava meio perdido, lembro--me de ler uma entrevista do Pedro Costa em que ele dizia que quando era puto era anarquista, ia às manifestações, mas que, às tantas , aquilo deixou-lhe de fazer sentido e decidiu ir para a Escola de Cinema. Pensei logo, que coincidência! Mas depois da Escola de Cinema ainda fui para Paris, para a Louis Lumière, e em Portugal fiz aqueles cursos da London Film School. Sempre quis ter essa relação com a matéria do cinema." Em A Fábrica de nada, precisamente, a câmara funciona como um bloco, avança para dentro da ação, contracena com aquelas pessoas reais ou imaginadas.

Talvez por ser filho de José Pinho, o dono das livrarias Ler Devagar, ganhou uma nova alergia: "Já não consigo entrar em livrarias, mas continuo um ávido amante de literatura. Continuo a ler muita ficção, mas atenção que o meu pai começou a trabalhar com livros muito tarde na minha vida. Ele reinventou-se, lembro-me de ele ter feito outras coisas, nomeadamente publicidade."

Para já, no seu caso, não vai querer reinventar-se. Vai continuar a lutar por um cinema em nome coletivo na Terratreme e acredita que mais do que provocar um debate, A Fábrica de nada vai suscitar questões: "O filme pretende lançar a discussão sobre o trabalho e o capitalismo, nem que seja a nível interno. Que as pessoas falem do filme e dos seus temas em casa. Há muitas pessoas que olham para isso do trabalho como algo sagrado, é algo cultural. Se calhar, ninguém pensa que poderia não ser assim. Nunca ninguém pensa que em vez de 40 horas, provavelmente só precisávamos de trabalhar dez... A maior parte das pessoas nunca pôs essas questões! Mesmo os pensadores de esquerda limitam-se a reivindicar o trabalho. A questão talvez não passe por pedir mais trabalho, talvez seja o contrário: pedir menos trabalho! Começámos este projeto em 2014 e assistimos ao pique do sentimento de impotência dos trabalhadores".

Seguramente por isso, mesmo quando tem um humor punk cerrado, A Fábrica de nada transforma-se em musical de lamento. Aqueles trabalhadores cantam e dançam para espantar os males de uma injustiça social. Afinal, haver coreografias numa fábrica vazia acaba por não ter muito de absurdo. Essa é a espantosa verdade deste filme-verdade.

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