Pedido de nacionalidade portuguesa. Abramovich não foi contactado sobre inquéritos e mantém que cumpriu a lei
O empresário multimilionário russo Roman Abramovich não foi contactado sobre os inquéritos em curso ao processo de obtenção da nacionalidade portuguesa como descendente de judeus sefarditas e mantém que cumpriu a lei, afirmou uma porta-voz à Lusa.
"Como afirmámos em dezembro, a candidatura foi feita inteiramente de acordo com a lei portuguesa", indicou a fonte.
Embora tenha direito à cidadania lituana por via do pai e avós, deportados durante a II Guerra Mundial, Abramovich pediu a portuguesa devido ao "espírito acolhedor" da legislação.
"A lei portuguesa do regresso não só permite, como encoraja ativamente judeus com ascendência portuguesa comprovada a estabelecer raízes em Portugal. Este espírito acolhedor atraiu Abramovich, que viu a candidatura à cidadania portuguesa como uma oportunidade para honrar a história da sua família e, ao mesmo tempo, apoiar a comunidade judaica local, contribuindo para a preservação da vida judaica em Portugal", justificou a porta-voz.
Ao contrário de várias notícias na comunicação social, salientou, "não há benefício imediato ou agenda oculta por trás de nada disto", lamentando a "publicação de muita informação falsa".
Com casas e família espalhada pela Rússia, Estados Unidos, Londres e Israel, o empresário russo está determinado a provar que pediu a nacionalidade portuguesa de boa-fé, com planos de investimento económico e donativos a instituições de beneficência, como fez em outros países.
"Ao longo do último ano, temos estado a avaliar a melhor forma de contribuir tanto para a preservação da herança judaica como o apoio à sociedade em geral em Portugal. Esperamos que alguns desses planos sejam realizados num futuro próximo", indicou a porta-voz à Lusa.
Abramovich naturalizou-se português em abril de 2021 ao abrigo da Lei da Nacionalidade como descendente de judeus sefarditas expulsos de Portugal no século XV, revelou em dezembro o jornal Público.
Milhares de pessoas usaram o mesmo programa desde a entrada em vigor da lei, em 2015.
Além do passaporte russo, Abramovich naturalizou-se israelita em 2018 no âmbito da Lei de Regresso, beneficiando da isenção de visto de entrada nos países europeus, não só da União Europeia (UE) como também o Reino Unido.
O futebolista Paulo Ferreira lamenta a controvérsia sobre o processo de obtenção da nacionalidade de Roman Abramovich, defendendo que ter o magnata russo como cidadão português trará apoios e investimentos para Portugal.
"Na minha opinião, devíamos estar felizes por ter alguém como o senhor Abramovich como cidadão português. É uma ótima pessoa que tem estado a fazer coisas ótimas nos países onde vive e faz negócios", defende, em declarações à Lusa, o antigo jogador do Chelsea, clube onde ainda trabalha e onde conheceu Abramovich em 2004
Para o antigo lateral direito, as pessoas "deviam dar-lhe uma oportunidade e ver o que ele quer, baseado no trabalho dele noutros países como no Reino Unido ou Israel", garante.
Ferreira diz que o magnata russo já lhe perguntou sobre organizações de beneficência para apoiar em Portugal e disse que também tenciona investir em oportunidades económicas, nomeadamente em 'startups' de tecnologia.
"A presença dele é positiva, devíamos estar satisfeitos", insiste.
Sobre as dúvidas levantadas quando à legitimidade das origens de Abramovich, o antigo internacional português aponta para a existência de dois pesos e duas medidas.
"Muitos jogadores, por exemplo sul-americanos, têm antecedentes [familiares] e, quando têm oportunidade para ter um passaporte europeu, fazem-no e as pessoas não criticam tanto. Alguns tornaram-se jogadores internacionais", lembra.
Roman Abramovich ganhou renome internacional com a compra do clube de futebol londrino Chelsea FC, em 2003, no qual investiu milhões de euros para o elevar ao nível dos grandes europeus, contratando jogadores e treinadores famosos.
O recrutamento em 2004 do treinador José Mourinho e de um contingente de jogadores portugueses, nomeadamente Paulo Ferreira, Ricardo Carvalho e Tiago, tornou-o também conhecido em Portugal.
Ao longo de quase duas décadas transformou o Chelsea FC num dos grandes da Primeira Liga inglesa e das competições europeias, mas a maior visibilidade atraiu escrutínio sobre os seus negócios as suas ligações ao regime do Presidente russo, Vladimir Putin.
Em 2018 retirou o pedido de renovação do visto de investidor no país devido ao conflito diplomático entre o Reino Unido e Rússia, na sequência do envenenamento do antigo espião Sergei Skripal em Inglaterra.
Na altura, a então primeira-ministra Theresa May ordenou uma reavaliação dos vistos atribuídos a centenas de "oligarcas russos" no país, porém Abramovich nunca foi sujeito a sanções internacionais.
Em dezembro, o opositor político russo Alexei Navalny criticou a decisão de Portugal de conceder a naturalização a Abramovich, questionando a legalidade e associando o empresário a Putin, numa altura de tensão militar na Ucrânia.
"Finalmente conseguiu encontrar um país onde pode pagar alguns subornos e fazer alguns pagamentos semioficiais e oficiais para acabar na União Europeia e na NATO", escreveu Navalny na rede social Twitter.
Mas a natureza do relacionamento entre Putin e Abramovich foi posta em causa recentemente na justiça britânica, que forçou a editora HarperCollins a pedir desculpas e a retirar do livro "Putin's People" as alegações de que o clube de futebol foi comprado sob ordens do chefe de Estado.
A Associação Frente Cívica, liderada pelo antigo candidato à Presidência da República portuguesa e antigo vice-presidente da Câmara do Porto Paulo de Morais, considerou "mais do que duvidosa [a] ligação de Abramovich às comunidades de judeus sefarditas".
Pessoas de mais de 60 países pediram a certificação para obter nacionalidade portuguesa ao abrigo da lei para os judeus sefarditas, adiantou Michael Rothwell, membro da administração da Comunidade Judaica do Porto (CJP).
Este responsável assegurou à Lusa que "só judeus descendentes de sefarditas genuínos com origem portuguesa podem obter a certificação" necessária e que o processo é "muito rigoroso".
Rothwell falava na sequência da controvérsia gerada pelo caso do multimilionário russo Roman Abramovich, que adquiriu a nacionalidade portuguesa em 2021, segundo revelou o jornal Público.
Críticas do opositor político russo Alexei Navalny e da Associação Frente Cívica levaram à abertura de dois inquéritos separados pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa e pelo Instituto dos Registos e Notariado (IRN).
A CJP nega qualquer irregularidade ou proveito financeiro, garantindo que só recebeu "dois pagamentos de 250 euros: a taxa da conservatória e o emolumento cobrado pela comunidade certificadora".
E adianta que, "para a defesa da comunidade judaica e para evitar novas conspirações anti-semitas, o processo de certificação de Abramovich também já está em posse de altas autoridades religiosas, culturais e políticas em Israel".
O processo, adiantou Rothwell, inclui atestados por órgãos religiosos e culturais judaicos internacionais de alto nível e a Comunidade Israelita do Porto avalia apenas pedidos de judeus com antepassados membros de comunidades sefarditas tradicionais.
Além de apelidos de família, idioma ou registos históricos, também avalia outros sinais de pertença, como rituais, idioma e práticas religiosas.
Estão identificadas comunidades sefarditas em países como Turquia, Tunísia, Marrocos, Egito, Sérvia, Bulgária ou Macedónia, onde se estabeleceram depois da expulsão de Portugal e Espanha, mas podem estender-se à Jamaica, Curaçao ou Suriname.
Os países que fizeram mais pedidos à CJP foram Israel, Turquia, Estados Unidos e Brasil, de descendentes de sefarditas do Norte de África e do Império Otomano.
"Sabemos que [o requerente] é judeu de origem sefardita porque manteve a tradição de pertença a uma comunidade judaica de origem portuguesa ao longo dos séculos. Não há qualquer dúvida que essa pessoa é de origem portuguesa, mesmo que eu não possa, nem a lei exige que faça isso, traçar a sua árvore genealógica até Portugal", vincou Rothwell.
Estes processos são mais simples e rápidos de analisar quando acompanhados por um atestado do rabinato ortodoxo de origem que seja aceite pelo Grão Rabinato de Israel, razão pela qual a CJP processou cerca de 90% dos pedidos de nacionalidade aprovados em Portugal.
Se as provas apresentadas forem insuficientes, os processos podem ser rejeitados ou pedidos mais documentos. Um certificado também pode ser anulado se ficar provado que foram usados documentos falsos, e o requerente processado judicialmente.
A Comunidade Israelita de Lisboa, por outro lado, atesta os casos de requerentes com base na descendência histórica sefardita, independentemente de serem judeus.
A comissão certificadora é composta por historiadores e genealogistas que têm de analisar documentos que percorrem gerações ao longo de vários séculos, incluindo transcrições paleográficas de processos da Inquisição.
A distinção de critérios entre as duas comunidades reflete diferentes abordagens na comunidade judaica sefardita, entre genealogia e tradição.
David Mendoza, um genealogista profissional britânico, navega facilmente nos registos históricos das comunidades dos Países Baixos e Reino Unido, juntamente com os arquivos relativos aos processos da Inquisição, a maioria já digitalizados.
Numa tarde consegue facilmente construir uma árvore genealógica de uma pessoa destas comunidades até 1750 através dos registos de nascimento, casamento, óbito ou registos equivalentes da sinagoga.
O processo deve ser completado com provas históricas de ligação a comunidades sefarditas, para que as linhas de descendência fiquem documentadas e possam ser verificadas.
"Deve ser sempre possível provar algo logicamente e corretamente, que respeite as normas genealógicas, mas pode levar mais tempo e dinheiro. Para um genealogista competente, é possível perceber na maioria dos casos e em poucos minutos se é elegível", garante Mendoza.
Segundo Rothwell, estima-se que vivam em Portugal atualmente cerca de 7.000 sefarditas dos quase 57.000 que adquiriram a nacionalidade através da lei em vigor desde 2015 como reparação histórica aos descendentes dos judeus expulsos da Península Ibérica durante a inquisição medieval, no final do século XV.
"Eu acho que é bom para um judeu ter um plano B em qualquer lado do mundo, porque ao longo da história estiveram sujeitos a expulsões, massacres, agressões. Poder viver noutro país. Quando pessoas pedem a certificação, não faz parte dos requisitos apresentar motivo" argumentou.
Sobre o caso Abramovich, receia que seja um reflexo de um crescente anti-semitismo que acompanha a maior visibilidade da comunidade judaica em Portugal.
"Esse caso só pode ser interpretado nesse contexto, infelizmente. Há vários fatores em jogo. Não sei a motivação que fez levantar suspeitas, mas existe anti-semitismo na maneira como o caso nasceu", lamenta.