As vozes que habitaram Carmen Dolores durante quase 70 anos de carreira, com quem a atriz ainda dialoga e a quem confessa, aos 94 anos, o muito que ainda tem para fazer, marcam o monólogo "Carmen", protagonizado por Natália Luiza, que se estreia quarta-feira no Teatro da Trindade, em Lisboa..A estrear-se no mesmo dia em que a sala principal do teatro passar a chamar-se Carmen Dolores, "Carmen" não é uma construção da atriz, mas antes "uma voz que ela torna sua através daquilo que é a sua própria escrita", revela Natália Luísa, que dá vida à personagem.."Esta Carmen que conta tem qualquer coisa de uma personagem tchekoviana", adianta Natália Luísa, que indica ter conhecido a atriz quando, dirigidas por Carlos Avilez, contracenaram em "O jardim das cerejas" (1987), no Teatro Experimental de Cascais..A Carmen "fazia a Liuba e eu a filha dela e embora só entrássemos no princípio foi ela a primeira pessoa que me deu a ´deixa` e é a minha madrinha de teatro", acrescenta Natália Luiza.. "Carmen seria das últimas pessoas a quem diria que não", sublinha de imediato..Foi por isso que voltou a subir ao palco -- o que não fazia há perto de 10 anos, desde "A rainha da beleza de Leenane", no Teatro Meridional, de que é codiretora artística com Miguel Seabra -- e aceitou o desafio de Diogo Infante e de Carmen Dolores para encarnar uma peça em que vê "a Carmen que escreve, que não tem público".."É uma Anna Petrovna", adianta, referindo-se à personagem de Tchekov. Porque a Anna é uma das "personagens persistentes" na vida de Carmen Dolores, como a própria admite, sublinha..E, para os atores, "as personagens persistentes, as que não conseguem resolver, são as que os habitam para sempre", argumenta..Não é, pois, de estranhar, que no cenário da peça -- onde sobressai o fundo do palco do Trindade atrás de adereços que se encontravam esquecidos no sótão do teatro, como disse Diogo Infante - Natália Luiza vá evoluindo na peça de forma fragmentada e emotiva à semelhança das recordações que Carmen Dolores pôs em livro..Recordações "de alguém que convive muito bem consigo própria e com o silêncio", observa a protagonista da peça.."Não é saudade o que sinto", ouve-se na voz de Natália, que enverga um vestido bege rosado também muito 'tchekoviano'..Num palco onde pontuam cadeiras de baloiço, ´charriots`, um pequeno toucador, rádios antigos, candeeiros e três gaiolas penduradas -- sob uma luz difusa - Natália Luiza vai-se expondo e escondendo, evoluindo na felicidade confessa à medida que se percebe que a personagem que encarna mudou na idade..Com dramaturgia e encenação de Diogo Infante, "Carmen", em cena no Trindade até 29 de julho -- com quatro récitas incluídas no 35.º Festival de Almada -- tem espaço cénico e figurino de Marta Carreiras, desenho de luz de Miguel Seabra e é uma coprodução dos teatros da Trindade e Meridional..Embora admita desconhecer por que motivo Carmen Dolores insistiu que o papel fosse representado por si, Natália Luiza reconhece que ambas "gostam de se esconder atrás de coisas". .Mas "esta mulher que acredita, que tem esperança, que tem sempre amanhãs" fê-la subir ao palco numa homenagem à atriz com quem contracenara em "Os espectros", de Henrik Ibsen, juntamente com Diogo Infante.."Porque é essa projeção do amanhã que eu acho muito bonita e o que este texto tem de radioso porque é uma história que nos faz bem", afirma Natália Luiza..Quando questionada se sabe por que motivo Carmen Dolores a escolheu para interpretar o monólogo, Natália Luiza responde perentória que não, alegando que não lhe pôs a questão..Ao fim de uns segundos de silêncio, hesita e diz: "Acho que o que ela me quis oferecer com este texto foi para eu aprender a não me amargurar, a fazer este percurso também"..No fundo, "ser provocada a ter alegria"..Como quem procura fazer-lhe entender que a solidão que procura "não é isolamento", mas antes uma "ânsia de auscultar os próprios sentimentos", uma das frases que encerra a peça.