PEANUTS - Histórias grandes de gente pequena

Há dez anos, a 12 de Fevereiro de 2000, falecia Charles Schulz, o criador de Peanuts, possivelmente a banda desenhada que mais autores (e não só) influenciou. No dia seguinte era publicada nos jornais a última prancha dominical desenhada por ele. Em Outubro passam sessenta anos sobre a estreia da sua criação.
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«QUEM TE DISSE que sabias jogar basebol? És o pior do mundo! És uma nulidade! És uma desgraça!», afirma alto e bom som Lucy, dirigindo-se a Charlie Brown, na tira de 7 de Setembro de 1959. Logo de seguida, Patty reitera: «Não prestas para nada! És abaixo de zero! És pior do que mau! És…»
Era Charlie Bown, em todo o seu (total desprovimento de) esplendor, ou não seja ele, possivelmente, o (anti)-herói mais nulo da história, sem quase nenhum êxito ao longo de cinquenta anos de quadradinhos. Mas foi com ele – em torno dele, mais exactamente – que Charles Monroe Schulz desenvolveu uma das mais notáveis galerias de personagens e um dos mais espantosos universos das histórias em quadradinhos, um autêntico «microcosmos», como os classificou o insuspeito Umberto Eco, «uma pequena comédia humana, tanto para o leitor inocente como para o leitor sofisticado». E estes dois níveis de leitura (pelo menos…) são um dos segredos do sucesso dos pequenos «amendoins» (tradução literal de peanuts, nome imposto pelo United Features Syndicate, que Schulz sempre abominou) que ao longo de quase cinco décadas e de 17 897 tiras diárias e pranchas dominicais integralmente escritas e desenhadas por ele mantiveram um assinalável nível de qualidade, chegando, no seu apogeu, a mais de 2500 jornais de todo o mundo, estando traduzidas em 25 línguas (incluindo o latim!) e em 75 países, tendo os seus livros vendido mais de trezentos milhões de exemplares.

Neles, aquele leitor simples citado por Eco diverte-se com os sucessivos fracassos de Charlie Brown – a lançar um papagaio, junto dos amigos, a jogar basebol, a chutar uma bola de futebol americano ou a conseguir chegar à fala com a rapariguinha de cabelo ruivo – repetidos à exaustão, sempre com desfechos diferentes, sempre com resultados iguais: o falhanço. E também com a maldade de Lucy, a sua indiferença como psiquiatra, o sempre surpreendente Snoopy, tão capaz de se portar como um cão quanto como um ser humano, dormindo no tecto da casota, escrevendo à máquina romances de sucesso, assumindo a identidade de um ás da aviação da Primeira Guerra Mundial em luta contra o terrível Barão Vermelho, o piano de Schroeder, o cobertor de Linus, o nonsense de muitas situações...

Quanto ao leitor sofisticado, embora se divertisse igualmente com as situações atrás descritas, apreciaria igualmente como com um grupo de crianças – a série esteve para se chamar Li’l folks (Gente Pequena) – e um cão, Snoopy, que progressivamente ocupa o lugar de consciência crítica do conjunto, Schulz foi capaz de criar um retrato tão próximo quer do seu mundo quer do mundo adulto. Porque dotou cada um com características do ser humano, inspirando-se para isso em familiares e amigos e vertendo muito da sua própria vida para as situações retratadas nos quadradinhos.

Ele próprio o afirmou: «Desenhei os Peanuts pela mesma razão que Beethoven compôs as suas sinfonias, porque era a minha vida.» Para o pior e para o melhor, pois Schulz era propenso a crises de depressão e de amarga solidão que frequentemente influenciaram a tira. Por isso, se os Peanuts podem ser ternos, meigos, engraçados, amigos, interessados, disponíveis ou altruístas, também conseguem ser maus, egocêntricos, cruéis, amargos, egoístas, ressentidos ou injustos.

Esta dualidade está também presente a nível dos temas. Se por um lado são os pequenos nadas quotidianos que ocupam Charlie Brown e os seus companheiros, por outro são recorrentes na série – tratados de forma enganadoramente leve e divertida – temas como o crescimento, a velhice, a morte, o futuro (assustador), os sonhos, as relações, as ambições… Além disso, ao longo dos anos, Schulz foi capaz de actualizar a série, introduzindo nela os avanços e as invenções que o homem foi criando, como a televisão, o microondas ou a chegada à Lua, em que Snoopy precedeu os astronautas da Apolo XI e mesmo… o gato do vizinho!
Graficamente, se se pode classificar de minimalista o traço de Schulz, já que «os seus desenhos não passavam de rabiscos, meia dúzia de traços pouco mais elaborados do que as figuras de pauzinhos das crianças», como escreve Walter Cronkite na introdução do segundo tomo de Peanuts – Obra Completa, e se muitas vezes os fundos das vinhetas se encontram vazios ou quase, a verdade é que o seu desenho é extremamente legível e expressivo, funcionando com toda a auto-suficiência nas muitas tiras sem qualquer palavra.

Finalmente, Schulz deixou que os seus heróis se libertassem do papel, saltando para o cinema de animação em mais de quatro dezenas de bem conseguidas longas-metragens, um musical da Broadway ou um espectáculo no gelo, transformando-os em apetecíveis marcas que serviram para publicitar tudo o que se possa imaginar e também para apoiar as causas que julgou meritórias. Por isso dificilmente algum de nós se pode gabar de nunca ter tido sua casa um ou outro artigo com Snoopy ou Charlie Brown estampados, mesmo que nunca tenha lido qualquer das suas tiras.

O que só se pode lamentar porque, pondo tudo o mais de lado, lembra Matt Groening, o criador dos Simpsons, fica «o que interessa: cinquenta anos de Peanuts propriamente ditos, a brilhante, atormentada e genuinamente divertida obra-prima de Schulz, impregnada de alegria e mágoa». E na qual nos podemos reconhecer, seja nos fracassos de Charlie Brown, na irritabilidade de Lucy (que nunca tem dúvidas e raramente se engana…), na insegurança do intelectual Linus, no virtuosismo de Schroeder, na dificuldade comunicacional de Woodstock e, pontualmente – felizes de nós – na multiplicidade de Snoopy porque, ainda segundo Cronkite, «o maior dos truques mágicos de Schulz foi dar vida a todas aquelas criaturas maravilhosas com as quais povoou o nosso mundo e alegrou os nossos dias».

Foi desse mundo, no qual teve «a felicidade de desenhar Charlie Brown e os seus amigos durante quase cinquenta anos», realizando completamente os seus «sonhos de criança», que Schulz se despediu, no último quadradinho que desenhou. E sem dificuldade podemos fazer nossas as suas palavras: «Charlie Brown, Snoopy, Linus, Lucy… nunca os poderei esquecer…»

Schulz e os Peanuts, uma cronologia

1922
26 de Novembro – Charles Monroe Schulz nasce em Mineápolis, no Minesota, EUA

1943
É incorporado no exército norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial, participando na libertação da França e na ocupação da Alemanha

1947
Publica as primeiras ilustrações humorísticas no Saturday Evening Post e Li’l Folks no Saint Paul Pionner Press

1950
Assina com o United Features Syndicate
2 de Outubro – Publicação da primeira tira diária de Peanuts, em oito jornais norte-americanos

1952
6 de Janeiro – Publicação da primeira prancha dominical de Peanuts
Lançada a primeira colectânea
A tira chega a mais de quarenta jornais norte-americanos

1955
Uma câmara da Kodak é o primeiro produto comercial a utilizar a marca Peanuts

1958
É comercializado o primeiro artigo de merchandising dos Peanuts: bonecos de Charlie Brown, Snoopy, Linus e Lucy

1965
Os Peanuts fazem a capa da revista Time

1967
Musical na Broadway: You’re a Good Man, Charlie Brown
Ronald Reagan, governador da Califórnia, institui 24 de Maio como o Dia Charles Schulz


1983
Os Peanuts surgem no Guinness Book of World Records como a primeira tira vendida a mais de dois mil jornais

1990
Recebe a Ordem das Artes e das Letras do ministro francês da Cultura Jack Lang durante uma exposição da sua obra no Museu do Louvre, em Paris

1992
Condecorado com a Ordem de Mérito pelo governo italiano

1996
Inaugura a sua estrela no Passeio da Fama, em Hollywood

1999
14 de Dezembro – Anuncia o fim dos Peanuts, por sofrer de cancro do cólon

2000
3 de Janeiro – Publicação da última tira diária dos Peanuts
12 de Fevereiro – Charles Schulz morre em Santa Rosa, Califórnia
13 de Fevereiro – Publicação da última prancha dominical dos Peanuts

2007
A prancha de 10 de Abril de 1955, assinada por Charles Schulz, mostrando Charlie Brown sozinho num campo de basebol, debaixo de um dilúvio, é arrematada num leilão por cerca de 76 500 euros

Peanuts, obra integral

Em 2004, a editora norte-americana Fantagraphics Books lançava o primeiro tomo de um ambicioso projecto: a edição integral de Peanuts, anunciando-a como «o mais aguardado e ambicioso projecto editorial da história das tiras diárias americanas». Dos 25 volumes previstos, lançados a uma média de dois por ano, estão já editados 12, devendo a edição ficar concluída em 2016. Cada volume, com mais de trezentas páginas, reúne por ordem cronológica, recuperadas e restauradas, todas as tiras diárias e pranchas dominicais de dois anos, com excepção do primeiro, que abarca o período 1950-1952.
O notável arranjo gráfico da colecção é da responsabilidade de Seth, também ele autor de BD, sendo cada volume prefaciado por personalidades de diferentes áreas que de alguma forma foram influenciadas pela obra de Schulz, como Matt Groening, criador dos Simpsons, a cantora Diana Krall, a actriz Whopi Goldberg ou a ex-tenista Billie Jean King.
Em 2006, a Afrontamento, a exemplo do que têm feito outras editoras um pouco por todo o mundo, lançou os dois primeiros tomos, em versão portuguesa Peanuts – Obra Completa, tendo até ao momento editado cinco volumes, o último dos quais em Dezembro último. Para este ano, prevê lançar em Maio o sexto tomo, referente a 1961-1962, com a caixa arquivadora para os volumes #5 e #6, e em Outubro os volumes 7 e 8, com a respectiva caixa.

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