Paz, amor e criptomoedas. O Porto foi "anarca" por dois dias

Um encontro de "pensadores livres" juntou 200 entusiastas do blockchain e moedas digitais na Alfândega do Porto. Entre sessões de ioga e meditação, discutiram sobre o poder da tecnologia na luta por um mundo melhor.
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Em 2014, Jessica Zartler só queria dar aulas de ioga e ver as estrelas. Escolheu Aljezur para passar o verão e foi no Algarve que chorou as dores de um amor que tinha chegado ao fim por Skype. A norte-americana não sabia ainda que um dia ia manter uma relação duradoura com Portugal.

Em janeiro deste ano, os astros voltaram a alinhar-se. Numa conferência em Miami, Jessica conheceu Bruno Livi, um empreendedor brasileiro radicado no Porto, onde há cerca de um ano fundou uma comunidade dedicada à tecnologia blockchain e às criptomoedas. Não demoraram muito a perceber que tinham interesses em comum.

"Vou a muitas conferências de tecnologia em todo o mundo e em todas elas as pessoas só trocam cartões de visita e olham para os smartphones. Não criam ligações. Quisemos fazer um evento mais genuíno que quebrasse essas barreiras", conta Jessica Zartler, ex-jornalista e atual antropóloga de blockchain, ao Dinheiro Vivo.

Em apenas três meses, Jessica e Bruno organizaram o Anarcha Portugal, o "primeiro colóquio do mundo para pensadores livres", nas palavras dos responsáveis. Durante dois dias, o evento transformou a Alfândega do Porto num "Boom Festival para geeks".

Na lista de oradores, a cabeça-de-cartaz era Brittany Kaiser, uma das denunciantes da Cambridge Analytica no caso que expôs a partilha ilegal de dados de 87 milhões de utilizadores do Facebook (ver entrevista).

O tempo de preparação foi pouco e o orçamento apertado, mas ainda assim o Anarcha Portugal conseguiu reunir cerca de 200 participantes, entre fundadores de startups, empresários, estudantes ou economistas. O que os distingue de outras conferências do género? Acreditam que a tecnologia blockchain vai libertar os cidadãos das amarras dos governos e dos bancos centrais e devolver o poder - e o dinheiro - às pessoas.

"Veio gente de todo o mundo. México, Brasil, Estados Unidos e até Austrália", conta Jessica, que ao longo de toda a conferência dispensa os sapatos sempre que pode. Muitos dos participantes são nómadas, como a própria fundadora do evento, que abandonou a Florida há seis anos e desde então viveu em lugares tão díspares como Alemanha, Japão ou Tailândia. "Neste momento vivo na Alfândega", brinca.

Sobre o conceito de anarquia que dá nome ao evento, Jessica Zartler admite não ser seguidora devota. "A palavra anarquia encerra muitas ideias. Para mim tem que ver com responsabilidade pessoal e não com lutas ou revoluções. É ter consciência de que as nossas ações diárias têm efeito nos outros. Pessoalmente não me considero anarquista porque acho que categorizar as pessoas é meio caminho andado para a segregação. No caso do Anarcha Portugal, o termo serve para levar as pessoas a pensar fora da caixa".

Rótulos à parte

Tal como a fundadora do evento, são muitos os participantes que dispensam o rótulo de anarquistas. Como Paulo Fonseca, designer digital e fundador da Upper, que veio de Lisboa ao Porto em busca de contactos úteis para possíveis projetos futuros.

"Descobri a conferência porque organizo um evento chamado Blockchain Portugal, que já tem mais de 1800 membros. Quando divulguei o Anarcha Portugal no grupo tive, aliás, de lhes dizer para não se assustarem com o nome porque a conotação dada à palavra é geralmente negativa. Mas acaba por ser um bom filtro. Quem não vem por pensar que isto é para anarquistas é porque não tem abertura suficiente para perceber o que se passa aqui", afirma o designer.

E o que se passa aqui afinal? "Fazemos parte de uma revolução", sublinha categoricamente Paulo Fonseca, entusiasta da tecnologia blockchain. "O que está a ser criado, aquilo que eu faço na minha empresa, ainda não é para o utilizador final, são as bases de uma coisa maior. É como dizer que não estamos a construir uma casa mas o seu esqueleto". Paulo confessa que começou por aderir à febre das criptomoedas pelo lucro. Investiu em bitcoins e ganhou dinheiro. "Desisti porque dá muito trabalho. Passam-se noites sem dormir, pensas naquilo 24 horas, ficas sem vida. Hoje o que me motiva é a inovação".

Foi por isso que saiu motivado da palestra de Griff Green, outra das estrelas do Anarcha Portugal. O norte-americano ficou conhecido por ter criado uma organização baseada na tecnologia blockchain que foi financiada pela segunda maior operação de crowdfunding de sempre: angariou mais de 150 milhões de dólares.

O projeto foi atacado por piratas e acabou por falhar e hoje Griff, também ele nómada, dedica-se ao Giveth, uma plataforma de solidariedade virtual. Na Alfândega dá nas vistas pela perna engessada, que oferece para autógrafos a quem passa, e pela t-shirt com a bandeira da Catalunha.

"A coragem do povo catalão é fora de série e é incrível como mantiveram a sua revolução pacífica perante a opressão. São um bom exemplo da descentralização que eu defendo. Se não querem fazer parte de uma organização devem poder escolher a liberdade. Sou a favor de todas as revoluções. Sou anarquista. Acho que não faz muito sentido impor os mesmos valores a todas as pessoas porque isso é coerção, e acredito que é possível resolver problemas sem governos. Não há maneiras certas e erradas de organizar grupos de pessoas. O poder corrompe", diz Griff Green.

A anarquia também seduziu Raphaël Lima desde cedo. Aos 28 anos, é estrela do YouTube no Brasil como protagonista do canal "Ideias Radicais". Tem mais de 400 mil seguidores no país de origem, mas foi em Portugal que percebeu o alcance do seu discurso "libertário".

"Estava a passear em Lisboa há dias e um senhor, português, na casa dos 60 anos, veio ter comigo para me dizer que segue o meu canal porque se interessa pelo que se passa no Brasil. Nunca tinha ficado tão surpreendido na vida. E ele estava com a neta, uma adolescente, que é normalmente o meu público-alvo", conta o YouTuber de Curitiba, ex-mágico e economista por autorrecriação.

"Sempre gostei de estudar assuntos por conta própria. Tornei-me mágico porque queria saber como se faziam os truques. Nos últimos anos comecei a estudar economia porque quis perceber por que o Brasil é pobre. Percebi que é pela excessiva intervenção do Estado. O YouTube acabou por se tornar no meu emprego

Do Porto leva algumas ideias para os próximos vídeos. "Fiz uma pequena sondagem por aqui e percebi que fora do Brasil ninguém sabe de facto porque a Dilma foi afastada da presidência, nem porque o Lula está preso. Fiquei chocado. Vou fazer uns vídeos em inglês".

À primeira vista, o objetivo de Jessica Zartler para a primeira edição do Anarcha Portugal está cumprido. "Queria que os participantes passassem a conhecer pelo menos uma pessoa que não conheciam antes de vir aqui". Quanto ao futuro do evento, à anarquia pertence. Mas Jessica desvenda alguns planos para os próximos tempos.

"Não queremos que isto seja um evento isolado, esperamos que cresça. E gostaríamos que fosse em Portugal. Já fomos contactados por algumas empresas que querem fazer um evento paralelo à Web Summit, mas ainda não há nada oficial. Conferências como a Web Summit são muito exclusivas e caras, não são para qualquer um. Nós queremos ser mais inclusivos e focar no impacto social das tecnologias. Queremos trazer os sem-abrigo para o centro da discussão", conclui Jessica, com os pés descalços.

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