Pavel Gomziakov dá ao Stradivarius "Rei de Portugal" a estreia discográfica
Ouvimos falar dele pela primeira vez há cerca de oito anos, quando começou a partilhar recitais com Maria João Pires. Depois, até gravaram juntos um CD com obras da última fase de Chopin para a Deutsche Grammophon. Entretanto, fixou-se em Portugal, inclusive ensinando na Universidade do Minho e dando aulas particulares. Falamos de Pavel Gomziakov, violoncelista russo.
Para o seu segundo registo na Onyx Classics, Gomziakov escolheu Joseph Haydn: os dois concertos para violoncelo, claro está; e, precedendo cada um deles, respetivamente, um arranjo (do próprio Gomziakov) do andamento lento do Concerto para violino em dó M; e o Adagio cantabile (2.º and., com violoncelo obbligato) da Sinfonia n.º 13, em ré M, obra datada dos primeiros anos de Haydn ao serviço dos Esterházy, logo contemporânea do Concerto em dó e também do de violino referido. O disco foi gravado em setembro de 2015, no Grande Auditório da Gulbenkian, com o solista acompanhado da Orquestra Gulbenkian, sem maestro, mas incluindo baixo contínuo (ao cravo), cujo intérprete não é (e devia ser) identificado.
Facto importante a priori nesta gravação é o facto de nela Gomziakov tocar o Stradivarius Chevillard Rei de Portugal, de 1725. O instrumento chegou a Portugal graças a D. Luís I (que era um bom violoncelista amador) e integra hoje a coleção do Museu da Música, estando classificado como "tesouro nacional". Tal implicou que Gomziakov fosse sempre acompanhado de uma escolta policial para as sessões de gravação. Foi a primeira vez que o instrumento saiu do Museu e é a primeira vez, com este disco, que ele é gravado. Ouvindo o disco de ponta a ponta, tal facto deixa-nos, no mínimo, atónitos.
Eis aqui um instrumento com um som cheio, polpudo, que sabe ser envernizado e acobreado, ir do cavernoso ao esvoaçante e ter sempre uma qualidade nobre no timbre, qual grand old gentleman. E o "jogo" de Gomziakov não só nos mostra isso, como outrossim revela ideias sempre muito claras acerca da condução discursiva do violoncelo solista no contexto do Classicismo vienense. Logo no arranjo mencionado, Gomziakov apropria para o instrumento esse Adagio, de tal forma ele deixa o instrumento falar através do recurso a uma expressão da retórica fundada no fraseio que pratica.
No 1.º andamento do Concerto em ré M (datado da década de 80 do século XVIII) junta ao que acabamos de referir um critério muito judicioso - e coerente - do uso de flutuações do "tempo", para depois nos impressionar numa cadenza de mais de quatro minutos de duração!
O Adagio central comprova como podia o galante ser profundo, com o solilóquio galante e loquaz do violoncelo a ser interrompido por efusões Sturm und Drang da orquestra, para a seguir, no Rondo que conclui a obra, Gomziakov levar a boa disposição e bonomia reinantes a territórios quase "bufos".
No Adagio cantabile extraído da Sinfonia n.º 13 impera a cantilena, com um breve episódio mais retórico no centro.
No Concerto em dó M, por fim, gostamos no Moderato do tom teatral (sem deixar de ser galante), do som e da intenção interpretativa de Gomziakov, intérprete que depois, no Adagio, faz do violoncelo uma voz humana - ou duas, já que a espaços parecemos assistir a uma conversação galante entre um cavalheiro e uma dama, onde há ocasião para fazer confidências, deixar escapar suspiros, ou aqui e ali até algum queixume. O Allegro molto é o único andamento realmente rápido nesta gravação e nele Gomziakov dá largas ao seu virtuosismo (enfim, já o mostrara bastamente no Rondo do Concerto precedente), que sabe inclusivé sugerir uma dramática cena de opera seria. De fio a pavio, a Orquestra Gulbenkian acompanha em sintonia e com o som devidamente trabalhado, liderada pelo concertino (para esta gravação) Erik Heide.
Crítico de música